O psicólogo americano diz que a maioria das pessoas
é inteligente para algumas áreas do conhecimento
e que o teste de QI não expressa esse fato
Monica Weinberg
Divulgação | "Com esforço, a inteligência humana pode ser aprimorada apenas até um certo ponto. A genialidade é para poucos" |
O psicólogo americano Howard Gardner deu um passo adiante na compreensão da inteligência humana ao concluir, com base em duas décadas de estudos, que a mente é composta de múltiplas capacidades independentes entre si. Ele descreveu cientificamente oito tipos de inteligência: a lingüística e a lógica (medidas em testes de QI), além da espacial, musical, corporal, naturalista (a habilidade de compreender os fenômenos naturais), intrapessoal (a de reconhecer os próprios defeitos e qualidades -- e tomar decisões com base neles) e interpessoal (a de interpretar as intenções alheias e exercer a liderança). A teoria de Gardner, que na década de 90 passou a influenciar acadêmicos e educadores, teve o mérito de subverter a visão de que a humanidade se divide basicamente entre seres iluminados e aqueles desprovidos de inteligência. Diz o psicólogo: "Há infinitas nuances. Pablo Picasso foi um gênio da pintura, mas era péssimo aluno". Aos 64 anos, professor da Universidade Harvard, nos Estados Unidos, e autor de vinte livros sobre o assunto, Gardner tem viajado o mundo para proferir palestras nas quais fala sobre genialidade, liderança e sala de aula. Ele concedeu a seguinte entrevista a VEJA.
Veja – Há pessoas menos inteligentes do que outras?
Gardner – Cada um tem uma mistura singular dos vários tipos de inteligência, o que torna a questão bem mais complexa do que dividir a humanidade entre burros e inteligentes. A observação científica mostra que o mundo está cheio de gente que se destaca no pensamento lógico, mas não tem inteligência suficiente para expressar uma idéia com começo, meio e fim. Ou de pessoas que são brilhantes ao filosofar sobre as grandes questões do mundo moderno e não têm nenhum traquejo para executar exercícios físicos de jardim-de-infância. Conclusão: a maioria das pessoas é, ao mesmo tempo, inteligente para algumas áreas do conhecimento e limitada para outras. Estou me referindo à média. Bem mais raros são os casos de gente desprovida de qualquer inteligência. Mas eles existem.
Veja – Até que ponto é possível desenvolver a inteligência?
Gardner – Essa é uma questão que vem intrigando os especialistas há séculos. Nas sociedades asiáticas influenciadas pelo confucionismo, vigora a idéia de que as pessoas diferem pouco no intelecto. Mais importante para seu sucesso é o esforço despendido por cada um. No Ocidente, por sua vez, circula a visão de que a inteligência é inata e de que quase nada se pode fazer para mudá-la. O fato é que a ciência já reuniu evidências suficientes para concluir que a inteligência é resultado dos dois fatores: a genética e a experiência de cada um. Ainda não se sabe qual deles tem mais peso. Algumas habilidades, como o raciocínio lógico e o talento para a música, sofrem maior influência da genética. Mas, no geral, tudo indica que os genes e o ambiente contribuam em igual proporção na formação da inteligência humana. Certamente não estão determinadas no berçário todas as capacidades intelectuais das pessoas, o que quer dizer, sim, que é possível esculpir a inteligência – ainda que haja limitações para isso.
Veja – Quais são os limites mais evidentes para o desenvolvimento da inteligência?
Gardner – A primeira barreira é imposta pela própria biologia: o tempo de vida de um indivíduo, em média de 70 anos, é curto para certos desafios intelectuais. O segundo ponto é que, quanto mais velha uma pessoa, mais dificuldade ela tem para mudar seu perfil de inteligência. Está demonstrado por meio de extensas pesquisas que a fase em que a experiência causa mais impacto ao cérebro é até os 20, 25 anos de vida. As pessoas podem até ficar mais sábias depois disso, mas não mais inteligentes. A única exceção a essa lógica é quanto às inteligências pessoais, aquelas que definem as capacidades de autoconhecimento e de lidar com seus semelhantes. Há evidências de que apenas estas se aperfeiçoam ao longo da vida. Um terceiro problema é que as chances de alguém sair das trevas numa determinada área de conhecimento também dependem de sua condição socioeconômica.
Veja – Como a classe social influencia na construção da inteligência?
Gardner – Está claro que um menino pobre do Brasil tem menos probabilidade de desenvolver suas múltiplas inteligências do que uma criança rica dos Estados Unidos. O jogo é desigual por uma razão simples: onde existem carências de recursos, há falta de estímulos. Feitas essas ponderações, não restam dúvidas de que, à custa de esforço, é possível alcançar bons resultados no aprimoramento da inteligência. Mas, na discussão sobre esse tema, há ainda outro aspecto que considero bastante interessante: o da genialidade. Os estudos indicam que é impossível tornar-se genial numa área para a qual não se tem talento natural.
Veja – Por quê?
Gardner – Está suficientemente demonstrado que são vários os fatores que atuam ao mesmo tempo para produzir tais talentos excepcionais – e não apenas um. Ao estudar trinta grandes gênios de áreas distintas, descobri uma característica em comum entre eles: são pessoas que exibem um conjunto de pelo menos dois tipos de inteligência em que sobressaem. Numa delas, têm desempenho extraordinário. Albert Einstein (físico alemão, 1879-1955), por exemplo, mostrava um fantástico raciocínio lógico-matemático e se destacava nas capacidades espaciais. Além de um talento especial para a música, Igor Stravinsky (compositor russo, 1882-1971) demonstrava outras inteligências artísticas, o que provavelmente explica sua carreira eclética: foi um grande compositor de balés, era capaz de musicar textos e tornou-se um dos comentaristas mais incisivos de sua época. Gosto também de citar o futebol. Se você nasce sem grande potencial nas áreas do pensamento espacial e do raciocínio lógico, pode treinar 365 dias por ano, ao longo de uma década, para, enfim, se tornar um bom jogador de futebol. Mas jamais será um Pelé.
Veja – Entre os oito tipos de inteligência que o senhor descreve, há um que seja mais determinante para o sucesso nas sociedades modernas?
Gardner – Certamente a inteligência mais valorizada hoje é a que defino como lógico-matemática. Digo isso com base num fato concreto: a maioria das grandes empresas procura, no mundo inteiro, gente capaz de observar padrões, manipular números e produzir análises objetivas. São pessoas com uma cabeça mais científica. Não estamos falando aqui apenas de matemáticos e engenheiros, mas de um jeito de atuar em diversas profissões. O pensamento lógico representa para a sociedade moderna o que significava a habilidade lingüística quinhentos anos atrás. Naquele tempo, as explicações mais convincentes para os fenômenos se propagavam por meio de relatos – contados ou escritos. Saber empregar um idioma com desenvoltura era, por essa razão, um bem incomparável. Com o advento da ciência, o raciocínio lógico passou a ser cultuado. Mas é bom que se ressalte: esse tipo de inteligência, isolada, dificilmente fará alguém alçar vôos mais ambiciosos – a não ser que o objetivo seja seguir carreira como matemático ou analista de sistemas.
Veja – Existe, então, uma combinação de habilidades mais admirada no mercado de trabalho?
Gardner – A união do pensamento lógico à capacidade de lidar com as pessoas tem resultado em carreiras de sucesso nas grandes empresas. O que não dá é para interpretar esse tipo de constatação como uma espécie de fórmula para o êxito. Em minhas palestras, faço questão de enfatizar dois pontos aparentemente óbvios. Primeiro, afirmo que mesmo os profissionais mais brilhantes precisam ter como motor a ambição para crescer. Cheguei a uma conclusão intrigante sobre muitos deles: apesar do talento fora do comum, são pessoas que tendem a ficar acomodadas em suas áreas de interesse. Acabam se tornando superespecialistas, mas, ironicamente, não costumam deixar nenhuma marca no mundo das idéias. O segundo ponto é que às vezes os melhores não dão certo quando chegam ao topo de uma organização, porque a eles, também, falta alguma espécie de inteligência fundamental para exercer o cargo de liderança.
Veja – Qual a lacuna mais comum entre os vários tipos de chefe?
Gardner – A muitos deles falta uma capacidade essencial à liderança – a inteligência para detectar suas forças e fraquezas. Isso não ocorre com os líderes mais eficientes, que têm um cérebro moldado para entender o que considero básico: como qualquer outra pessoa, não sabem tudo, estão sujeitos a errar e, por essa razão, se cercam de gente melhor do que eles em áreas nas quais se saem pior. Os líderes menos eficazes, por sua vez, pecam pelo excesso de orgulho e pela cegueira sobre suas reais capacidades. O presidente americano George W. Bush é o melhor exemplo de ausência desse tipo de inteligência – a que me refiro como inteligência pessoal – e por isso é incapaz de produzir uma auto-avaliação mais realista. Bush também esbarra numa outra deficiência comum entre pessoas que ocupam função de liderança: a de não pensar nas grandes questões existenciais, mas ater-se somente aos problemas mais imediatos do dia-a-dia.
Veja – Essa é uma limitação e tanto.
Gardner – Sem dúvida. Sabe-se que, desde o tempo das cavernas, os homens apresentavam um cérebro capaz de imaginar o infinito e de considerar questões cosmológicas, muito além da preocupação com a própria sobrevivência. Vários dos líderes modernos, no entanto, não exibem essa capacidade. Eles têm dificuldade de pensar num espectro mais amplo. Está claro que as pessoas mais eficazes em cargos de comando são aquelas que conseguem despertar nos outros a sensação de que fazem parte de um projeto maior. É uma característica que separa os líderes que ficarão na história dos que logo serão descartados da memória coletiva. Dois bons exemplos são o indiano Mahatma Gandhi (1869-1948) e Nelson Mandela (ex-presidente sul-africano). Adolf Hitler (1889-1945) e Mao Tsé-tung (1893-1976), ambos ditadores, respectivamente, na Alemanha e na China, alcançaram o mesmo efeito em suas platéias – sem ter feito, claro, o uso positivo de suas capacidades intelectuais.
Veja – A inteligência tem alguma relação com a moral?
Gardner – Definitivamente, não. As inteligências são moralmente neutras. Tome-se como exemplo a comparação entre Joseph Goebbels (1897-1945), o ministro da Propaganda de Hitler, e o poeta Goethe (1749-1832), ambos mestres no emprego da língua materna: o alemão. Em poder do mesmo tipo de inteligência, Goebbels disseminou o ódio e Goethe criou obras de arte. O estudo que fiz sobre os trinta personagens com atuação acima do comum em suas respectivas áreas, ao longo da história, ajuda a enfatizar a idéia da inteligência amoral. Tirando Gandhi, nenhuma das figuras por mim pesquisadas teve uma vida pessoal digna de ser classificada como exemplar. Pablo Picasso (pintor espanhol, 1881-1973), T.S. Eliot (poeta inglês, 1888-1965) e até Einstein, para citar alguns, lamentavelmente demonstraram insensibilidade moral em muitos aspectos da vida. Com base nesses argumentos, repito o que pode parecer óbvio: o principal desafio da humanidade não é apenas produzir um exército de pessoas com suas múltiplas inteligências afiadas – o maior avanço será vê-las usadas de forma mais ética.
Veja – O senhor acha que é viável contemplar as diferentes inteligências nas escolas?
Gardner – Concordo com meus adversários no campo acadêmico: é difícil transpor toda essa teoria à realidade das salas de aula. Ensinar as matérias de sete ou oito maneiras distintas seria uma tarefa para loucos, e não é isso que eu proponho. Mas acho que aplicar em sala de aula ao menos dois jeitos diferentes de ver um mesmo problema já terá sido um tremendo avanço em relação ao que se vê hoje no mundo todo: escolas atrasadas educando as crianças para o século passado. Com base em dezenas de viagens pelo mundo, afirmo que as escolas estão, no geral, cometendo o mesmo erro: elas ensinam as crianças a ler, escrever e usar o computador como um fim em si, quando essas são apenas ferramentas para aprofundar o conhecimento sobre temas mais relevantes.
Veja – Como é possível identificar oito tipos de inteligência se há apenas medidores para duas ou três delas?
Gardner – A neurociência já produziu um sólido conjunto de evidências para comprovar minha tese. Por meio da observação do cérebro em funcionamento, essas pesquisas revelam que a mente humana abriga, sim, capacidades intelectuais independentes entre si. É da combinação delas que surgem os mais diversos perfis de inteligência. Infelizmente, as sociedades modernas não assimilaram o que a ciência descortinou décadas atrás. Elas seguem com uma visão antiga – valorizam apenas os tipos de inteligência que podem ser medidos em testes de QI, como as habilidades para a matemática e a lingüística. Em relação às demais capacidades humanas que descrevo em meu trabalho, elas ainda são desprezadas pela maioria das pessoas.