O mínimo que uma política oficial pode fazer, em sua justa pretensão de proteger a herança cultural e os remanescentes de determinado grupo social, é comprovar, preliminarmente, sua existência real e histórica. Haveria sentido, por exemplo, em garantir reservas exclusivas de terras a uma tribo indígena apenas lendária, sem nenhuma comprovação de existência histórica, só porque um grupo de pessoas se diz dela originário?
Embora não se trate de questão da mesma natureza, assim como o Estado brasileiro cuida de preservar o legado cultural das diversas etnias indígenas que remanescem em inúmeros pontos do território nacional, demarcando-lhes reservas (independentemente de estas poderem ser consideradas ou não superdimensionadas - dado que as necessidades de espaço das populações deste século não podem se equiparar às daquelas de muitos séculos atrás), é natural que também sejam preservadas as tradições comunitárias dos quilombos - povoações de tipo africano, nos sertões brasileiros, formadas por escravos fugidos, cujos habitantes passaram a ser denominados quilombolas. Mas como sói acontecer quando exageros ideológicos extrapolam quaisquer dados antropológicos, passou-se no País a uma verdadeira “produção” de quilombos, sem paralelo com os dos tempos da escravidão.
Escreveu o jornalista Marcos Sá Corrêa - em artigo de nossa edição de quarta-feira - que “nenhum brasileiro precisa ir muito longe para encontrar um quilombo nascendo, com selo oficial, praticamente na esquina de casa. Se alguma coisa está acontecendo pela-primeira-vez-na-história-deste-país ou mesmo deste planeta é que, 120 anos depois da Lei Áurea, o Brasil produz quilombolas como nunca”. A origem dessa grande expansão quilombólica está, sem dúvida, no Decreto 4.887 de 2003. Entre outras coisas estabelece ele que “a caracterização dos remanescentes das comunidades dos quilombos será atestada mediante autodefinição da própria comunidade”. E determina que, “para a medição e demarcação das terras, serão levados em consideração critérios de territorialidade indicados pelos remanescentes das comunidades dos quilombos”. Essa regra legal não abre a possibilidade de que qualquer grupo de pessoas - sejam elas afrodescendentes ou nem tanto - resolva reivindicar (com base na simples autodefinição) estas ou aquelas terras? E, se a “autodefinição” é bastante, quem exigirá comprovação da condição de quilombola remanescente?
Certamente, não o governo do presidente Lula, que ainda na semana passada, em um dos seus discursos cotidianos, prometeu atender a toda e qualquer reivindicação de “autodefinidos” quilombolas.
O artigo faz referência ao que ocorre na Reserva Biológica do Guaporé, que está na mira de um processo de titulação dos moradores de Santo Antonio - povoado esse que, dentro do refúgio natural, não passa de 17 famílias, ocupando 200 hectares de terra firme, numa planície encharcada de Rondônia. Com sua “generosidade em privatizar o patrimônio público”, o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) resolveu que essas 17 famílias de quilombolas precisam de, no mínimo, 86 mil hectares para viver. Já o Ibama, depois de ouvir os próprios quilombolas, concluiu que bastariam 3,5 mil hectares da reserva para os moradores de Santo Antonio viverem, como fizeram até hoje, dos roçados de subsistência, da criação de animais domésticos e da pesca. Até o líder comunitário Zeca Lula, que preside a Associação Comunitária Quilombola e Ecológica do Vale do Guaporé, acha que bastariam 44 mil hectares para aquele grupo - quer dizer, metade do ofertado pelo Incra.
Dessa forma, se não bastasse a generosa presunção legal pela qual quilombola é quem se diz quilombola e quilombo é tudo o que o quilombola acha que é seu, vem o órgão público encarregado da reforma agrária estimular ao máximo a “produção” de quilombos - e haja quilombolas para preenchê-los! E aqui vem outra situação, no mínimo, esquisita: a Ilha da Marambaia, às portas do Rio de Janeiro, pode passar, depois de cem anos, da Marinha para 379 moradores. Estes ganhariam quase 70% dos 82 quilômetros quadrados de litoral preservado pela reserva militar. E o mais interessante é que entre os quilombolas da Marambaia 21%, espontaneamente, se consideram “brancos”...