A nação dos bestificados Há pouco mais de um mês, um mar de gente manteve submersos, horas a fio, os calçadões, degraus das lojas, as duas pistas e o canteiro central da Avenida Paulista. É improvável que a multidão reunida em 8 de junho tenha chegado a 3,5 milhões de cabeças, como festejaram os organizadores. Mas passaram de 2 milhões os participantes da maior manifestação popular da História do Brasil.
Os moradores da avenida ficaram intrigados com a barulheira. Não existe carnaval em junho, e o Sambódromo fica longe dali. Aquilo não era coisa de folião, concluíram. Nem coisa de torcedor: a Copa do Mundo só é disputada em anos pares, e a maior nação católica do mundo não se atreveria a profanar o feriadão do Corpus Christi com alguma decisão de campeonato. Portanto, tampouco era coisa de torcedor. No país que inventou o carnaval e reinventou o futebol, o que mais poderia mobilizar a multidão que contemplavam das janelas?
Teria o povo saído às ruas para decretar o fim das sucessivas bofetadas na face decente do Brasil? Teria perdido de vez a paciência com a roubalheira de proporções amazônicas, a redução do Congresso a sucursal do crime organizado, o apagão aéreo interminável, a institucionalização do cinismo?, imaginaram os otimistas incuráveis.
Nada disso, esclareceram palavras de ordem berradas pela multidão e inscrições nas faixas desfraldadas pela comissão de frente. Os manifestantes de 8 de junho eram todos devotos da Igreja Renascer, ramificação da tribo dos evangélicos. Estavam no coração da metrópole para reivindicar o retorno ao Brasil do apóstolo Estevam Hernandez e da bispa Sônia Hernandez, líderes da seita.
Retidos há meses na Flórida, ambos são acusados de envolvimento em grossas bandalheiras. Por decisão unânime, os fiéis absolveram os bandidos e condenaram os mocinhos. O apóstolo e a bispa não passam de vítimas de hereges infiltrados na polícia e na Justiça dos EUA.
Se os pastores bandidos reassumirem a condução do rebanho, estará resolvido o único problema que aflige a turma da Renascer. Seria bom se o governo brasileiro ajudasse, murmuram os pregadores em liberdade. Mas Lula não tem nada a ver com o caso, ressalvam. A seita não tem queixas nem pedidos a formular ao Planalto. Tudo vai bem no Brasil.
Se melhorar, estraga, preveniram os convivas das festas de 1º de Maio. Em São Paulo, pela primeira vez num Dia do Trabalho, a platéia não pediu aumento de salário. Só pediu que se aumentasse o som, para ouvir melhor as cantorias das duplas sertanejas. As multidões agora só se manifestam a favor, informou este outono espantoso. A favor do governo, como no Dia do Trabalho. Ou a favor da canonização de pecadores.
Os filhos da terra nunca morreram de amores por protestos coletivos. Abstraído um punhado de episódios especialmente dramáticos - a rebelião dos paulistas em 1932, as turbulências que precederam o golpe de 1964, a campanha das Diretas-Já em 1984 - o povo sempre recusou o papel de protagonista da História. Mesmo quando confrontado com crises agudas, preferiu refugiar-se no elenco dos figurantes - ou diluir-se na platéia dos espectadores desinteressados.
"O povo assistiu bestificado à Proclamação da República", registrou Aristides Lobo em suas memórias. E bestificado assistiria, mais de 100 anos depois, ao advento da Era da Mediocridade. "A gente tem que aprender a gritar de novo", diz a cientista política Lygia Pereira. A boa frase ficaria ainda melhor sem as duas últimas palavras.
Não se pode fazer de novo o que nunca foi feito. O povo jamais soube gritar. Está mais que na hora de aprender.