Piada comunista assombra Cuba
Em meio às dificuldades, população empobrecida ri do regime e deseja que Fidel se vá, mas teme que venha alguém pior
Claudio Mafra, especial para o Estado
Havana - Chegando ao ótimo hotel Casa Grande, em Santiago de Cuba, vejo que um amigo já conseguiu uma mesa na varanda e está conversando com três moças. Puxo uma cadeira, olho para elas e faço a pergunta fulminante: 'Vocês são comunistas?' Alguns segundos de colossal espanto. Logo depois, as três caem em gargalhadas beirando o histerismo, uma coisa tão contagiante que nós também nos sacudimos de rir. Quando perguntei: 'Por que vocês riram?', a mais esperta respondeu: 'Pela mesma razão que vocês!'
A pergunta, tão crua, forte, soou estranha porque em Cuba se evita essa palavra. Preferem 'revolucionários'. Ao usar 'comunismo' eu enfatizei a desgraça que estão vivendo. Ainda rindo, uma das moças põe as mãos na testa e diz: 'E eu ensino História Cubana!' Mais gargalhadas. Impossível um quadro mais claro: o regime cubano é uma piada sinistra. Depois elas nos contam sobre os filhos, que aos 15 anos de idade têm de entrar para o partido ou serão considerados 'contra-revolucionários'.
Em minha viagem - a segunda em oito anos -, entrevistei 56 pessoas, e apenas 3 se manifestaram a favor do regime. Afinal, já são 48 anos de ditadura, e Fidel não quer largar a rapadura, de jeito nenhum. Além de escapar da CIA, parece que sua lendária auto-estima o torna capaz de derrotar qualquer doença.
Na cidade de Santiago consegui achar um ótimo interlocutor, o Noel. Enquanto come o melhor almoço de sua vida (lagosta, paga por mim, claro) e sem nenhum medo de falar, ele vai respondendo de uma maneira tão franca que por momentos cheguei a pensar que seria um agente do governo me fazendo de bobo. 'Fidel é rico?', indaguei, pensando em contas bancárias na Suíça. 'Claro', respondeu Noel. 'Ele é o dono de 11 milhões de pessoas, das casas, dos carros, dos hotéis, deste restaurante e de tudo que você está vendo.'
Noel logo começa a explicar de que maneira o ditador se livrou dos outros revolucionários para ficar sozinho no poder. Vai movimentando o saleiro e os garfos, como se fossem peças de xadrez. Um dos outros é Che Guevara, outro mais é Camilo Cienfuegos, e assim ele vai contando os estratagemas de Fidel. Sobre Cienfuegos, que morreu em um mal explicado desastre de avião, Noel diz que existe uma expressão em Cuba: 'Cara, você é mais misterioso do que a morte de Camilo.'
SENHA
O meu descontraído informante, quando se refere ao Comandante, passa a mão no queixo, fazendo um cavanhaque imaginário, e explica, rindo, que é a senha que as pessoas usam para não dizerem seu nome. 'E o serviço médico?', pergunto. 'Você tem de esperar dois, três meses na fila para ser atendido.' Bem, nada diferente do Brasil. A pergunta: 'Como é que os cubanos estão vendo a doença do Fidel?' A melhor das respostas: 'Lembra-se de quando ele caiu e machucou a perna? As pessoas diziam: 'Caiu, caiu!'' - e Noel estampa um enorme sorriso. Para não fugir à regra, ele também não sabe quantos filhos Fidel tem, se está casado, e assim por diante.
Os cubanos querem que El Comandante os deixe, mas ao mesmo tempo têm medo de que venha alguém pior. Raúl pode ser pior. Uma moça resume tudo quando me alerta sutilmente que 'existem muitos comandantes'. Poucas pessoas ainda se iludem com o sistema. As bombásticas frases pintadas nas paredes exaltando a revolução se tornaram cansativas e até infantis. Os cubanos estão fartos de ser 'revolucionários', estão desiludidos, desesperados por uma mudança. Nas cidades, uma das fontes da consciência de seu drama é o turismo. Eles são humilhados pelo apartheid do turismo: de um lado os turistas, que tudo podem, e do outro os cubanos, que não podem nada.
DUAS MOEDAS
Para começar, há duas moedas em circulação. Entre os cubanos circulam os pesos. Entre os turistas, os 'convertibles'. Um convertible (US$ 1,20) vale 25 pesos, sendo que os salários no geral variam de 125 pesos ao mês (faxineiros) até uns 600 pesos (médicos, militares). Isso significa que um médico ganha por volta de 25 convertibles ao mês. O mais comum é um trabalhador ganhar 250 pesos.
O cubano, passando pela rua, pode ver a mesa do restaurante onde um turista com sua família está gastando 50 convertibles em um jantar, ou seja, o que ele ganha em cinco meses de trabalho. Dos dois lados o constrangimento é total. Desse modo, os cubanos vivem de forma humilhante em um mundo à parte, não podendo desfrutar dos prazeres que seu país proporciona, reservados apenas aos turistas.
Estar ligado ao turismo é uma das melhores opções para os cubanos porque eles recebem 'propinas', ou gorjetas. São escolhidos os mais qualificados, ou aqueles com maior apadrinhamento político. Uma gorjeta de US$ 2, quase 50 pesos, representa cinco dias de trabalho num emprego de rendimento médio.
VACAS ESTATAIS
Aluguei um carro e não perco nenhuma oportunidade de dar carona ('botella') nas estradas do interior de Cuba. Quanto mais longo o trajeto, mais as pessoas ganham confiança e desabafam. Três jovens estão no banco de trás do Peugeot e e o assunto são as vacas que vemos pastando, solitárias, já que não há nenhum rebanho. Uma mocinha e um rapaz se inflamam nas críticas ao sistema e o terceiro está apavorado, louco para sair do carro. 'São 25 anos de prisão se alguém matar uma vaca!', grita a mocinha. O rapaz dá os detalhes. A mocinha continua, exaltada: 'A carne é para vocês, turistas, nós não podemos, é muito caro!'
Fico sabendo que a vaca não é de seu suposto dono. São vacas estatais. A vantagem para o 'dono' são o leite e o queijo, que ele pode vender. Quando nasce um bezerro ele paga uma taxa. Mais tarde, entrou um 'dono' de vaca no carro, com o leite e tudo. O regime não é tão duro assim. São apenas 5 anos de prisão se ele ficar louco e matar a vaca, mas se for um estranho são mesmo 25 anos. Com cabras, porcos e galinhas, a lei não se importa.
No famosa cidade de Varadero, há muitos cubanos hospedados em hotéis de qualidade inferior. A conta é paga pelo Estado. São os 'vanguardias', trabalhadores que se destacaram em seus serviços e foram beneficiados pelos 'estímulos' dados pelo governo. Parece que esses campeões do trabalho também têm direito a três dias de lua-de-mel. Ainda há o estímulo em pesos, ou mesmo convertibles para aqueles que nunca faltaram ou chegaram atrasados, o que é chamado de 'idoneidade'. Uma mulher e sua mãe, perfeitamente à vontade, me contam que estão no hotel porque têm uma tia que é figura importante na província.
Quando você vê cubanos em cafés ou restaurantes de turistas, a melhor explicação é a de que eles são os privilegiados que recebem dólares remetidos do exterior por algum parente que conseguiu fugir de Cuba, ou por alguém que recebeu um convite para morar em outro país - coisa dificílima, cheia de problemas burocráticos.
'JEITINHO' CUBANO
O chofer de táxi fica me esperando, mas antes desliga o taxímetro. Quando volto, ele pede que eu me sente no meio do banco: 'Se o senhor se sentar perto de janela, um sensor aciona o taxímetro e o dinheiro vai para a empresa. Acontece que preciso de algum para mim mesmo.' Ótimo, vamos ajudar o rapaz a enganar a ditadura.
Sempre me impressionam os velhos sentados em muros, ou no passeio ao lado da rua, pensativos, olhar distante. Estão em todos os lugares das cidades. Será que se sentem culpados pelo que aconteceu a seu país? Será que lutaram ao lado de Fidel e agora se arrependem? Impossível puxar conversa com eles, pois não abrem a boca.
É difícil aceitar Cuba socialista. É muito diferente do que foi, por exemplo, o Leste Europeu durante o império soviético. Lá o clima era tenso, as pessoas eram duras, falavam línguas estranhas, sentia-se muito mais a brutalidade do regime. A dificuldade de comunicação colocava um muro entre os poucos turistas e a população do país. É dificil se acostumar com o fato de que a tragédia da Europa Oriental, tão distante, aconteceu aqui, nos trópicos, com um povo tão gentil falando uma língua quase igual à nossa. Também é perturbador constatar que, em sua maioria, os cubanos têm consciência dos crimes e das violências de seu governo - e de quanto ele é ridículo.
ÓPERA-BUFA
Agora estão assistindo, entusiasmados, à novela dublada Cabocla, da Globo. Existe uma atmosfera romântica que ficaria melhor com uma ditadura estilo ópera-bufa, como a de Fulgencio Batista, derrubado por Fidel. No Museu da Revolução vi uma foto em que Batista aparece com seus ministros. Todo mundo de terno branco. Só faltava a dançarina Ninon Sevilha rebolando ao lado. Ele era igualzinho a um cantor de bolero.
Muito irônico que Fidel, nos primeiros momentos da revolução, tenha se referido às prostitutas ao dispor dos americanos. Hoje, existe uma indústria de turismo sexual, com os cafetões abordando você na rua e oferecendo suas mulheres diante de todo mundo. Quem diria...
Em Havana, Hemingway escreveu Por Quem os Sinos Dobram quando se hospedava no Hotel Ambos os Mundos. Seu quarto está como ele o deixou. A cama, a máquina de escrever. Tudo tão simples, tão pobre. Revolucionou a prosa no mundo e terminou se suicidando.
Na parede puseram um retrato do pescador Santiago, a grande figura que aparece em O Velho e o Mar. O livro de visitas tem a assinatura da linda Mariel Hemingway, em 12/8/99. Papa Hemingway já foi a ponte que os cubanos possuíam para o 'homem bom' do regime capitalista. Sua casa é atração turística, os bares que freqüentava são famosos, seus drinques favoritos são célebres.
RESTAURAÇÃO
La Habana Vieja é muito bonita. Está sendo toda restaurada com dinheiro da Unesco. Palácios, casas coloniais espanholas, tudo preservado. Quando um prédio não resiste e desaba, eles fazem uma praça no lugar. Gente interessante passou por Havana: Bolívar, Humboldt, Juárez, Garibaldi. Até Eça de Queiroz morou na Calle Obispo. É muito bom ir passeando e tomando daiquiris e mojitos de bar em bar, ouvindo os sensacionais músicos.
Sobre os famosos carros americanos antigos, só posso dizer que são maravilhosos. Enfeitam as cidades, são marca registrada de Cuba. Estou sempre dentro de um deles.
Os charutos são oferecidos no mercado paralelo. Comprei os tradicionais Romeo y Julieta por US$ 35. Mostrei para muitas pessoas e todas me disseram que eram verdadeiros, mas um profissional não se deixou enganar: 'Não são legítimos.' Quando eu disse que assim mesmo eram ótimos, ele matou a questão: 'Claro, são cubanos.'