e muito engraçado
As excentricidades do inglês Evelyn Waugh,
um dos grandes mestres da sátira moderna
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Irascível, beberrão, intolerante com os próprios filhos e assumidamente esnobe, o escritor inglês Evelyn Waugh (1903-1966) era um tipo difícil. Uma amiga certa feita lhe perguntou como ele conseguia conciliar tanta maldade com sua professada fé religiosa. "Você não tem idéia de quão mais detestável eu seria se não fosse católico", respondeu Waugh. "Sem ajuda sobrenatural, eu nem sequer seria humano." O autor de Declínio e Queda e Furo! é reputado como um dos mais ácidos satiristas da literatura inglesa. Convém lembrar que os satiristas também podem ser grandes pensadores morais – como fica demonstrado em Homens em Armas (tradução de Antonio Sepulveda; Nova Fronteira; 282 páginas; 39,90 reais), romance de Waugh lançado recentemente no Brasil. Primeira parte de A Espada de Honra, trilogia sobre a II Guerra Mundial (cujos livros seguintes, Oficiais e Gentlemen e Rendição Incondicional, também serão publicados pela Nova Fronteira), o livro não chega a ser considerado um representante da veia satírica do autor. Não traz o deboche escancarado de, por exemplo, Malícia Negra (Globo), retrato devastador do colonialismo europeu na África. Mesmo assim, é difícil encontrar um personagem que não apresente um lado ridículo.
O clã Waugh tem uma vasta tradição literária. Somando a obra de filhos, netos e bisnetos do editor Arthur Waugh – pai de Evelyn –, chega-se a cerca de 180 livros. Evelyn é a estrela mais brilhante dessa constelação familiar. Mas seu próprio pai não o reconhecia como tal: o filho preferido era Alec, o mais velho. Escritor de sucesso em sua época, Alec caiu no esquecimento. Evelyn, ao contrário, ainda é uma influência vibrante na literatura inglesa – basta lembrar o romance vencedor do prêmio Booker de 2004, A Linha da Beleza, de Alan Hollinghurst, uma clara revisão de Memórias de Brideshead, um dos romances mais célebres de Waugh (Hollinghurst apenas tornou mais explícito o subtexto homossexual do livro original). As relações de pai e filho dos Waugh – desveladas em detalhe no recente Fathers and Sons, "autobiografia familiar" de Alexander Waugh, neto de Evelyn – dariam matéria para muita especulação psicanalítica. O próprio Evelyn, que teve sete filhos, era um pai odioso. Apelidou uma filha obesa de "leitoa" e não escondia seu desapreço por crianças. "São adultos defeituosos", definiu.
Waugh foi um jovem perdido. Tentou a vida como professor, mas não conseguia segurar um emprego por muito tempo. Bebia muito gim e tinha ímpetos autodestrutivos. Em 1925, determinado a se matar por afogamento, nadou mar adentro em uma praia do País de Gales – mas desistiu do suicídio ao ser queimado por uma água-viva. Foi salvo pela literatura e pelo catolicismo, ao qual se converteu em 1930, depois de se divorciar da primeira mulher. Na II Guerra, lutou em Creta e na Iugoslávia, experiência fundamental para a composição de A Espada de Honra. Na contramão do esquerdismo que dominou a vida cultural britânica no pós-guerra, Waugh cultivou a imagem pública de um reacionário raivoso (mais ou menos como Nelson Rodrigues, outro católico heterodoxo, faria no Brasil, ao publicar uma coletânea de crônicas com o título de O Reacionário).
A fama de esnobe também se colou ao autor, por causa da crônica detalhada que ele faz da aristocracia inglesa em romances como Um Punhado de Pó e Memórias de Brideshead. Waugh aceitou o rótulo com alguma reticência. Em 1947, em uma carta a uma revista irlandesa que o criticara, ele observava que o esnobismo não é necessariamente contrário à caridade, virtude que, como católico, ele prezava. O fato, porém, é que essa é uma imputação tola: os aristocratas não são tratados com deferência na ficção de Waugh. Guy Crouchback, protagonista da trilogia A Espada de Honra, é exemplar nesse sentido: divorciado e sem filhos, ele é o fim de uma linhagem nobre tão antiga quanto decadente (seu pai se viu obrigado a vender a propriedade rural do clã). Com a cabeça cheia de ideais cavalheirescos, ele se alista nas Forças Armadas para lutar contra o nazismo, embora, com 35 anos, já esteja passando da idade própria para o campo de batalha. Ao longo dos três volumes da série, Guy fatalmente se desilude com a vida militar. O próprio catolicismo nem sempre é apresentado sob uma luz favorável – padres venais aparecem como personagens secundários da trama. Waugh parecia acreditar que a fé católica sobrevivia às falhas de seus representantes. Seu método literário era submeter todos os valores às rasteiras da ironia. O que parasse de pé mereceria respeito.