Entrevista:O Estado inteligente

sábado, julho 07, 2007

Néstor Kirchner lança a mulher para sua sucessão

OPERAÇÃO CASADA

Cristina Kirchner vai se candidatar a presidente.
O que virá? Mais do mesmo, mas com Botox


Vilma Gryzinski

AFP
Cristina, com o marido, na capa da Newsweek latina: projeto de doze anos de poder para essa "sociedade político-amorosa quase perfeita"

Dá para acreditar que exista um político que, tendo a reeleição garantida, abra mão voluntariamente do poder? Em benefício da própria mulher? E não uma mulher-tampão, daquelas que guardam o lugar do marido e seguem todas as suas instruções, mas uma leoa de cabelos tão fartos quanto as próprias idéias? O fato de que exista um homem assim, e ainda por cima seja peronista (o dogma número 1 do peronismo é jamais ceder ou delegar 1 milímetro do poder conquistado), atesta a força da aliança orgânica entre Néstor Kirchner, o atual presidente da Argentina, e Cristina, sua mulher e altamente provável substituta na Casa Rosada. Desde que um então desconhecido Kirchner saiu da patagônica província de Santa Cruz e foi eleito presidente numa Argentina que agonizava na mais destruidora de todas as suas crises, já se aventava a hipótese do projeto K: ele cumpriria seus quatro anos, ela viria em seguida, ele voltaria em 2011, completando um ciclo de doze anos no poder. Impossível, inconcebível, absurdo. Perdeu-se a conta de quantas vezes Cristina, que tem carreira própria e é senadora pela província de Buenos Aires, desmentiu que seria candidata a presidente. Enquanto isso, o projeto K correu impávido. Na semana passada, um porta-voz de Kirchner confirmou que Cristina será mesmo candidata na eleição de outubro. Pelas pesquisas atuais, terá entre 50% e 60% dos votos.

Exceto no caso de uma catástrofe, portanto, Cristina Kirchner será a próxima presidente da Argentina. Os kirchneristas vivem espalhando que ela imprimirá um estilo menos beligerante, mais aberto ao mundo e, imaginem só, até mais simpático aos mercados. O fato é que o governo Cristina será exatamente igual ao do marido, com suas qualidades, enquanto os deuses da economia permitirem o notável crescimento econômico de 9% ao ano, e seus defeitos (viés estatizante, controle de preços, déficit energético e inflação que, mesmo quase tão maquiada quanto a senhora Kirchner, ronda os 10%). Cristina e Kirchner formam uma aliança política desde que se conheceram na Faculdade de Direito da cidade de La Plata, nos tenebrosos anos 70, ambos militantes da esquerda peronista. Ela, uma das meninas mais bonitas da faculdade, uma morocha de longa cabeleira que usava minissaia com botas e namorava um jogador de rúgbi bonitão. Ele, uma versão mais jovem do que é hoje – nariz adunco, olhos esbugalhados, comportamento mercurial. Militaram juntos, foram presos juntos e juntos recuaram quando a Argentina caiu num de seus tantos vórtices de autodestruição que acabaria levando às trevas da ditadura militar. Foram para Santa Cruz, a terra dele, relativamente menos convulsionada. Tornaram-se advogados bem-sucedidos, ganharam dinheiro, investiram em imóveis – as 22 propriedades da família na província são administradas pelo filho Máximo, de 30 anos; Florencia, a menina de 16, mora com os pais em Buenos Aires. Metodicamente, retomaram a vida política, dessa vez de modo mais convencional: ele foi governador de Santa Cruz três vezes; ela foi deputada, depois senadora. Inseparáveis, apesar das brigas e discussões.

"São uma sociedade político-amorosa quase perfeita", define Olga Wornat, jornalista que escreveu uma biografia altamente elogiosa de sua amiga Cristina. "Uma fêmea indomável, inteligente, polêmica, transgressora e ambiciosa como nenhuma outra desde Eva Perón", derrama-se ela, evocando o inescapável mito. Cristina Elizabeth Fernández ("Tenho nome de rainha e gosto disso") nasceu em fevereiro de 1953, sete meses depois que um câncer de útero consumiu a imperatriz do populismo, mas até hoje não existe uma única mulher que resvale o pé na política argentina sem que inevitavelmente surjam as comparações com ela – com a outra senhora Perón, Isabelita, a catastrófica substituta post-mortem do general, ninguém quer ter a menor proximidade. Cristina, claro, reza no altar de Evita ("a militante, não a vestida de Dior"), mas destaca mais a identidade com Hillary Clinton, numa prova de que, como boa argentina, tem a auto-estima na estratosfera. É evidente que existem pontos em comum – as duas são advogadas, ambiciosas, formam power couples com os maridos e querem ser presidente. Mas a Argentina obviamente não é os Estados Unidos, nem Néstor Kirchner é Bill Clinton. Nunca apareceu uma Monica na vida do argentino e, se tivesse aparecido, é possível que não estivesse por aí para contar a história, dado o temperamento notoriamente explosivo de Cristina. Briguenta, ela se arrepia toda se seu aparato visual aparece mais do que a ação política. E haja aparato. A cabeleira reforçada por apliques, a maquiagem pesada, o arsenal de intervenções estéticas, o chamativo figurino, o Rolex de ouro – tudo é perscrutado com lupa, para fúria de Cristina. "Desde os 15 anos sempre me pintei como uma porta", desafia ela. "Posso me arrumar, me vestir, ficar divina e nem por isso ser menos eficiente em minha vocação: a política". Se as tendências atuais seguirem o rumo previsível, os argentinos terão quatro anos para comparar o discurso com a prática – e também para verificar como se comporta uma nova vertente da matriz peronista, que já gerou tendências de extrema esquerda, de extrema direita, reformistas, populistas, anarquistas e, com Cristina, inaugurará a era do peronismo com Botox.

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