O presidente Lula tem se especializado em fazer confissões públicas, depois de chegar ao poder federal que buscou incessantemente nos últimos 20 anos. Já revelou que fazia muitas bravatas quando estava na oposição, já admitiu que não estava preparado para se eleger presidente da República em 1989 — Collor demonstrou, na prática, que também não estava, o que só explicita o fato de que na primeira eleição direta depois da ditadura militar também os eleitores não estavam preparados, pois escolheram errado os candidatos que foram para o segundo turno — e, numa seqüência lógica, por esses dias confessou em um de seus vários improvisos que muitas das coisas que reivindicou nos últimos 20 anos não tinham consistência quando confrontadas com a realidade.
Lula, que tem a média de um pronunciamento por dia útil desde que assumiu o governo e anda estranhamente calado depois da tragédia de Congonhas, deve ir hoje à televisão para anunciar mudanças na organização do setor aéreo brasileiro, dez meses depois de outra tragédia, a da colisão do jato Legacy com o avião da Gol que revelou as mazelas que estão por trás de uma área que tinha a fama de ser campeã em segurança, com padrão internacional.
Se se confirmar a informação de que o presidente anunciará a abertura do capital da Infraero e a possibilidade de a iniciativa privada passar a administrar aeroportos pelo país, em regime de concessões, estará se completando mais um ciclo de transformações no modo de pensar do nosso presidente.
A campanha contra as privatizações, que lhe garantiu a reeleição no segundo turno da eleição do ano passado, passará a ser fato do passado diante da impossibilidade material de encarar a imensa tarefa de modernizar o nosso sistema de tráfego aéreo.
O ex-deputado Delfim Netto, que criou a Infraero quando era ministro da Fazenda nos anos 1970, hoje considera que este foi um grande erro que cometeu na sua vida pública, e defende a privatização do órgão.
A verba prevista para a modernização pelo Plano de Aceleração do Crescimento (PAC), e mais o orçamento total da Infraero, somados, não chegam nem à metade da verba necessária apenas para a manutenção e melhoramentos nos aeroportos que existem atualmente. O que dizer da construção de novos aeroportos, de novas pistas, de novos equipamentos de controle do tráfego aéreo? A abertura do capital da Infraero tem resistências de duas categorias: a ideológica, de parte do PT, e a corporativa, de dentro da Aeronáutica, que não quer abrir mão do controle do órgão. O próprio presidente Lula vetou a primeira tentativa do ministro do Planejamento, Paulo Bernardo, de abrir o capital do órgão, com medo de parecer que estava privatizando.
O assunto voltou à pauta do governo diante da necessidade de alterar completamente a estrutura do setor aéreo, que está se revelando ineficiente. É possível que, dez meses depois da primeira tragédia, o governo venha a anunciar uma nova estrutura, criando um órgão que a coordenará, se não definitivamente, pelo menos em caráter emergencial até que esteja implantado.
Ao contrário do que aconteceu com o apagão energético de 2001, quando o Palácio do Planalto foi apanhado de surpresa pela iminência da necessidade de um racionamento quando não havia nada mais a fazer, desta vez o próprio presidente Lula recebeu do exministro da Defesa embaixador José Viegas um relatório alertando para a crise que se avizinhava, se não fossem realizados investimentos na infra-estrutura do setor aéreo.
A Infraero gastou milhões na modernização de diversos aeroportos pelo país afora, que serviram de mote na campanha pela sucessão, mas não se dedicou a modernizar a tecnologia e as pistas desses mesmos aeroportos, no mais puro estilo propagandístico deste governo, que vem dando certo do ponto de vista puramente eleitoral.
Na política, costuma-se dizer que só existem dois fatos importantes: o fato novo e o fato consumado.
Ao governo anterior, diante do fato consumado, só restou montar um gabinete de emergência para organizar o racionamento inevitável.
Depois de terem falhado todos os esquemas de dentro do governo para superar os problemas de abastecimento dos reservatórios das hidrelétricas, sem que o então ministro Rodolfo Tourinho tivesse informado ao presidente Fernando Henrique Cardoso, o governo soube gerenciar as conseqüências do erro e encontrar uma solução menos traumática do que o puro e simples racionamento por quatro horas diárias, que foi a primeira sugestão.
O estímulo à poupança de energia acabou mostrandose eficiente, embora a população tenha sido obrigada a alterar seus hábitos e o país tenha pagado caro pelo erro: o crescimento da economia, que tinha um ritmo perto de 6% naquele ano, acabou próximo do zero.
Foi o trágico fato novo do desastre de Congonhas que fez com que o governo saísse da letargia.
Entrevista:O Estado inteligente
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