A história dos cinco jovens que venceram
a miséria, entraram na universidade e estão
hoje entre os melhores alunos do país
Camila Antunes
Fotos Anderson Schneider e Nabor Goulart | ||
ALFABETIZADA NA ROÇA PELA IRMÃ MAIS VELHA | ACAMPADA NUMA SALA DE AULA |
A gaúcha Theilis Pereira, 25 anos, chamou atenção em sua estréia na universidade. Enquanto os colegas carregavam livros e mochilas, a jovem trazia nas costas um colchonete. Sua única chance de seguir com os estudos seria morar no campus. Theilis ouviu de um funcionário que o alojamento estava lotado e, até que surgisse uma vaga, passou um mês acampada em uma sala de aula vazia. Filha de um mestre-de-obras e de uma empregada doméstica, ambos semi-analfabetos, Theilis concluiu, com louvor, no ano passado o curso de arquivologia na Universidade Federal de Santa Maria, a 100 quilômetros de Caçapava do Sul, sua cidade natal. De acordo com o novo Enade, prova aplicada aos universitários pelo Ministério da Educação (MEC), a jovem gaúcha é uma das melhores estudantes do país e aparece em primeiro lugar em sua área: tirou nota 8,3 – num exame cuja média geral não ultrapassou 4,5. Dos vinte campeões no ranking oficial, outros quatro, além de Theilis, surpreendem por contrariar uma velha lógica: enquanto a maioria dos bons universitários vem de famílias mais escolarizadas e de renda mais alta, esses estudantes se destacaram em meio à escassez absoluta.
Antes de chegarem em primeiro lugar na prova do MEC, os cinco campeões mais pobres venceram uma peneira ainda pior. Todo ano, dos 2 milhões de estudantes egressos de escolas públicas, como eles, apenas 100 000 chegam à universidade. Isso mesmo: 1,9 milhão, ou 95% dos jovens brasileiros, ficam longe das salas de aula por volta dos 18 anos. Theilis e o restante do grupo abriram mão de programas noturnos e vararam madrugadas sobre os livros (muitas vezes com uma lanterna na mão para não incomodar os irmãos) na tentativa de superar a má formação escolar – e passar no vestibular. A desvantagem dos campeões não era pequena: com base em dados do MEC, sabe-se que alunos de escola pública registram, em média, atraso de quatro anos nas matérias. Foi essa lacuna que eles venceram, em primeiro lugar. Depreende-se ainda um segundo fato em comum ao grupo: apesar de virem de famílias cujos pais não têm estudo e vivem com dois salários mínimos por mês, esses estudantes receberam toda espécie de incentivo para não desistir da escola nem da universidade. "A vida inteira foi assim: o trocado que sobrava no bolso ia para a compra de livros e jornais", conta o aposentado Antônio Santos, pai de três filhos que chegaram à universidade. Um deles, Alessandro, surgiu na lista do MEC como o melhor do país em relações públicas, notícia que fez Antônio encher-se de emoção – e vaidade. "Tenho dificuldade em ler, mas sempre soube que investir em estudo era o certo na vida."
Nos últimos quatro anos, Antônio, que ganha 500 reais por mês, rachou com o filho as mensalidades da faculdade, enquanto a irmã mais velha lhe financiou as passagens de ônibus. Até tomar a decisão de ingressar numa instituição particular, a Cásper Líbero, o jovem Alessandro, morador de Taboão da Serra, cidade na periferia da capital paulista, havia amargado dois fracassos no vestibular da Universidade de São Paulo (USP). É o que ocorre com 96% dos jovens de estratos de renda mais baixos quando tentam entrar na USP. A maioria desiste do sonho universitário. Alessandro, por sua vez, empregou-se como caixa de supermercado na rede Wal-Mart para bancar os estudos numa faculdade particular. "Varro o chão, empacoto a comida e, quando dá tempo, leio João Cabral de Melo Neto." Sua rotina, semelhante à dos estudantes mais pobres que sobressaíram no ranking oficial, de novo enfatiza a idéia de que o esforço pode, sim, neutralizar um ponto de partida ruim nos estudos. Alessandro acorda todos os dias às 6 horas, volta para casa depois da meia-noite e estuda com disciplina nos raros intervalos. Com olheiras, mas animado, começou a colher os resultados. Na semana passada, foi avisado de que receberá uma promoção no supermercado, com chance de atuar, afinal, na área em que se graduou.
Julia Moraes | Marcelo Elias |
O DIPLOMA AJUDOU |
O jovem de Taboão da Serra e seus colegas em destaque no Enade experimentam aquilo que os teóricos não se cansam de repetir – e quantificar: quanto mais se estuda, maiores são as oportunidades de um bom emprego. Quem conclui a universidade tem salários, em média, 168% superiores aos daqueles que não passam do ensino médio, segundo dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Sem o diploma, Juliano de Andrade estava estacionado em um salário de 1.000 reais, que recebia havia dez anos numa firma de contabilidade de Curitiba. Filho de uma família pobre, tinha até então passado de office-boy a contador por puro esforço, mas se deu conta de que precisava estudar mais para subir na empresa. Aos 28 anos, fez cursinho (onde cultivou fama de aluno exemplar) e passou – em primeiro lugar – em ciências contábeis na Universidade Federal do Paraná, feito que repetiu, agora, com o Enade. O diploma ajudou. O salário de Juliano logo dobrou e, aos 33 anos, ele ganhou um cargo de chefia e novo ânimo para os estudos: "Vou até o doutorado".
Ao jogar luz sobre histórias como as de Juliano, Alessandro e Theilis, o MEC não só enfatiza uma idéia simples, de que empenho fora do comum traz ótimos resultados, como também põe em prática algo raro no país: uma política de estímulo ao mérito. Os vinte campeões do Enade serão premiados com uma vaga de mestrado numa universidade a sua escolha, com ajuda financeira incluída. Para a brasiliense Natalina Pinheiro, 22 anos – a filha de caseiros que foi alfabetizada na roça pela irmã mais velha –, é muito além do que havia planejado na infância. "Peguei muito livro emprestado sonhando um dia pelo menos chegar à universidade", diz a moça, hoje formada em biblioteconomia pela Universidade de Brasília. Para jovens como ela, ter o talento – e o esforço – reconhecido já é, por si só, um incentivo para que estudem mais. A divulgação do ranking do MEC também deu a esses estudantes nova dimensão em suas respectivas vizinhanças: eles se tornaram uma espécie de celebridade local. A melhor estudante do país no curso normal (de ensino superior), Fabiana Vicente, 26 anos, não pode sair à rua que esbarra com uma fila de pessoas lhe dando abraços e parabéns. Em Pedro Leopoldo, município a 45 minutos de Belo Horizonte, há pelo menos dez faixas em homenagem a ela. Diz a pragmática filha de um mecânico e de uma ex-empregada doméstica: "Estudei muito, sim. Quem quer melhorar de vida não tem tempo a perder".