A moça da livraria e a
malta do Maracanã
Para muitos, no Brasil, saber o nome
do papa ou de um ex-presidente não
passa de pura perda de tempo
A personagem da semana, para o colunista que vos fala, é a moça que numa livraria de São Paulo atendeu o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso durante uma noite de autógrafos. Sabe-se como são esses eventos. Compra-se o livro, e a pessoa que o vende, ou então uma outra, ao lado, pergunta o nome do comprador e o anota num papelzinho. O papel vai dentro do livro até as mãos do autor, para informá-lo do nome daqueles que não conhece, ao fazer a dedicatória, ou salvá-lo do desastre, no caso de esquecer o nome de algum conhecido. "Como é o seu nome?", perguntou a moça. "Fernando Henrique Cardoso", respondeu aquele senhor de gravata listrada, óculos e cabelos grisalhos. Ela então se dirigiu à senhora que o acompanhava. "E o seu nome, por favor?" "Ruth Cardoso." E vida que segue. "O próximo, por favor?"
O caso foi noticiado, sem descer à minúcia dos diálogos acima (na verdade, recriações deste autor), na coluna de Cesar Giobbi no jornal O Estado de S. Paulo. A moça não conhecia, ou não reconheceu, o ex-presidente. Se fosse uma secretária, e um dia Fernando Henrique Cardoso ligasse para falar com seu chefe, ela replicaria com aquela fatídica pergunta: "Fernando Henrique da onde?". A resposta ao da onde? é o abre-te-sésamo pelo qual a secretária (e seu chefe) saberá de que empresa, de que corporação, de que irmandade é o interlocutor, o que lhe conferirá uma existência mais palpável e o livrará da ignomínia de se constituir num avulso. Se fosse há alguns anos, Fernando Henrique responderia: "Da Presidência da República". A moça então comunicaria ao chefe: "Está na linha um tal Fernando Henrique Cardoso, da Presidência da República. O senhor atende?".
Não só ela. É de supor, com razoável possibilidade de acerto, que milhões de outras, e de outros, por este país continental afora, agiriam do mesmo modo. Nessa mesma semana que passou, uma pesquisa revelou que 51% dos brasileiros não sabem o nome do papa, e uma outra, que 59% nunca ouviram falar do PAC, o programa que o governo mais marqueteou neste ano. O mal não ataca só as camadas pobres. Este é o país em que uma ex-primeira-dama (deve-se revelar quem é? Melhor não. Mas que fique bem claro: é ex-primeira-dama. Ex) uma vez perguntou, numa conversa em família, quem era Getúlio Vargas. Quando estranharam que não soubesse, defendeu-se com o argumento de que não era obrigada a conhecer gente que viveu antes de ela nascer. (Epa! Será que esse dado lhe revela a identidade?)
A moça da livraria, se for mesmo um caso típico, como aqui se supõe – ou, mais ainda, se aposta –, revela um país tão interligado pela oferta de informação instantânea de nossa era quanto irmanado na ignorância. Os mais cáusticos dirão que isso explica a popularidade do presidente Lula e as boas avaliações de seu governo. Há conclusão mais triste a tirar. A de que este é um país em que, para grande parte da população, é irrelevante, perda de tempo, não serve para nada, saber o nome do papa, ou reconhecer o rosto de quem até outro dia ocupou a Presidência da República.
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O evento da semana, para o colunista, foram as rixas que irromperam nas arquibancadas e nos corredores do Maracanã durante a cerimônia que, com a presença do presidente Lula, marcou a formatura dos primeiros 5.000 jovens pobres escolhidos para servir como "guias cívicos" durante os Jogos Pan-Americanos do Rio de Janeiro. O programa dos "guias cívicos", patrocinado pelo governo federal, tem o objetivo de treinar jovens de 14 a 24 anos para bem receber os visitantes estrangeiros durante os Jogos. Ao mesmo tempo, pretende incentivar a boa convivência entre rapazes e moças oriundos das diferentes comunidades (o novo nome das favelas) do Rio. A cerimônia foi mostrada na TV do modo idílico como em geral são tratadas semelhantes iniciativas. "Bienvenidos al Rio", disse um menino, exibindo o que aprendeu para bem impressionar os estrangeiros. Em seu discurso, Lula criticou a imprensa por só dar notícia desfavorável sobre os jovens, esquecendo-se das favoráveis, como a boa disposição das turmas ali reunidas. Enquanto isso, lá no alto das arquibancadas, fora da vista do presidente, dos ministros, do governador Sérgio Cabral e outras autoridades...
Jovens do CV xingavam os do ADA, os do ADA cercavam os do CV, os do CV empurravam os do ADA, os do ADA perseguiam os do CV. CV e ADA – ó leitores irmanados pela ignorância! – são facções do tráfico de drogas. Conforme o morador seja da Rocinha, do Vidigal, do Alemão ou da Maré – e esses lugares todos encontravam-se ali representados – estará sob o domínio do CV ou do ADA. Para muitos que sabem o nome do papa e dos ex-presidentes, neste país, é irrelevante saber o que é CV, o que é ADA, e quem se filia a um ou a outro. Para muitos outros, o papa e ex-presidentes são irrelevantes, mas é vital saber o que é CV, o que é ADA, quem é do CV e quem é do ADA.