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Planalto obriga FAB a negociar com amotinados e provoca crise militar
Oficiais das Forças Armadas ficam indignados com a possibilidade de não haver punições para controladores
Bruno Tavares e Marcelo Godoy
A decisão do presidente Luiz Inácio Lula da Silva de impedir a prisão dos controladores de vôo amotinados no centro de controle aéreo de Brasília (Cindacta-1) abriu uma crise entre os militares. Para oficiais-generais ouvidos pelo Estado, a ordem presidencial “maculou” a hierarquia e a disciplina, pilares das Forças Armadas. Mesmo insatisfeito, o Alto Comando da Força Aérea Brasileira (FAB) divulgou ontem uma nota oficial em que acata o acordo feito entre o governo e os sargentos controladores.
“Temos de nos adaptar aos tempos e preservar as instituições. Mas já que é desejo deles (dos líderes do movimento) se tornar civis, queremos que saiam o quanto antes do nosso convívio”, diz um oficial da FAB. Não há clima de demissão no Alto Comando da Aeronáutica. “Por enquanto, todos vão manter seus postos.”
Apesar disso, os oficiais consideram que se abriu um precedente perigoso para as três Forças. Na opinião de outro militar, melhor seria que o governo se reunisse com o Alto Comando da FAB e revisse a decisão de não punir os rebelados. “O que eles (os controladores) fizeram é crime, previsto no Código Penal Militar.” Um oficial do Exército foi mais longe: “Você sabe que os nossos pilares são hierarquia e disciplina. Sessenta e quatro só saiu porque tentaram quebrar esses dois pilares”.
A frase com a referência ao movimento que derrubou o presidente João Goulart em 1964 demonstra o apoio que a FAB recebeu ontem do Exército e da Marinha. “Há total solidariedade com o comando da Aeronáutica, não tenha a menor dúvida disso”, diz um oficial do Exército. Os militares avaliam que é necessário demonstrar união, para evitar que a atitude dos controladores tenha um efeito dominó. “As três Forças sofrem o mesmo problema (salarial)”. Daí o risco que os oficiais dizem haver de eclosão de outros movimentos reivindicatórios nas Forças Armadas.
As imagens de praças amotinados em Brasília e em outros quartéis exibidas pela imprensa causou revolta e a certeza de que os controladores promoveram um motim, crime que seus autores não procuram esconder. Pelo contrário, posaram para fotos, numa verdadeira afronta aos seus comandantes.
Ao contrário do que ocorreu na gestão do brigadeiro Luiz Carlos Bueno, desta vez os militares não criticaram a atuação do comandante da Aeronáutica, Juniti Saito, na condução da crise. O Palácio do Planalto também assegurou estar “muito satisfeito” e garantiu a manutenção de Saito. “O comandante da Aeronáutica não está comprometido e não foi desautorizado pelo presidente. O presidente não vai mexer no Saito”, disse um interlocutor direto do presidente. “Ele (o comandante da FAB) teve coragem de parar no meio do caminho e agiu com sabedoria”, afirmou Lula, de acordo com o mesmo interlocutor.
Concluídas as negociações, ainda na madrugada de sábado, Saito convocou uma reunião do Alto Comando da Aeronáutica para as 10 horas de ontem. Avaliou-se a crise e suas seqüelas - inclusive os danos à imagem de Saito. Ele permaneceu no cargo, para não agravar mais a situação. Seu sucessor natural, o brigadeiro Jose Américo dos Santos, já foi comandante do tráfego aéreo e enfrentou problemas com controladores.
Em relação ao ministro da Defesa, Waldir Pires, o interlocutor do presidente afirmou que “foi negativa a ausência dele em Brasília, na hora que estourou a crise”, e não sabia a razão de sua viagem. Só ontem a Defesa explicou que o ministro foi ver a filha, que passou por cirurgia.
INTELIGÊNCIA
Há uma semana, os serviços de inteligência da Aeronáutica sabiam que haveria algum tipo de ato de protesto dos controladores. Segundo um oficial do setor, eram esperados um encontro das famílias dos técnicos diante do Cindacta-1 e uma operação-padrão nos aeroportos, no feriado da Semana Santa. O militar considera que o auto-aquartelamento e a paralisação das operações podem ter sido decididos de última hora, depois que as lideranças dos controladores tomaram conhecimento do vazamento das informações.
FAB acata desmilitarização
Abaixo, a íntegra da nota oficial divulgada ontem pela FAB: “Em decorrência do acordo estabelecido na noite de 30 de março entre o governo federal e os controladores, o Comando da Aeronáutica propôs que os controladores passem a exercer, independentemente da gestão militar, o controle de tráfego aéreo de natureza civil, a partir da criação de um novo órgão, diretamente subordinado ao Ministério da Defesa. Os militares e civis que atuam em órgãos de controle de tráfego aéreo passarão à subordinação dessa nova organização.
A Aeronáutica continuará com sua atribuição institucional de Controle do Espaço Aéreo, cabendo ao novo órgão a ser criado o Controle da Circulação Aérea Geral. O Comando da Aeronáutica compreende a posição assumida pelo governo, em face da sensibilidade do assunto para os interesses do País, principalmente no tocante à garantia da tranqüilidade do público usuário de transporte aéreo. O Alto Comando da Aeronáutica, diante da gravidade da atitude adotada pelos controladores, destaca a importância da manutenção dos princípios basilares da hierarquia e da disciplina e reafirma a coesão da Força Aérea sob a autoridade de seu comandante.”
COLABORARAM TÂNIA MONTEIRO E ROBERTO GODOY
Controle aéreo vai ser desmilitarizado
Migração de pessoal militar para o sistema civil começa na terça-feira
Vannildo Mendes, BRASÍLIA
A partir da próxima terça-feira, o governo começa a colocar em prática um plano gradual de desmilitarização do controle de tráfego aéreo, ponto crucial do acordo fechado no início da madrugada de sábado para pôr fim à greve da categoria. A migração do pessoal militar para o sistema civil pode começar já e, se houver vontade política, pode ser concluída ainda este ano, segundo prevê o presidente da Associação Brasileira dos Controladores de Tráfego Aéreo, Wellington Rodrigues.
A migração técnica, porém, envolve um trabalho meticuloso e demorado, que pode levar de dois a três anos, para a reestruturação dos sistemas eletrônicos de controle de vôo, de comunicação e de meteorologia. “O importante é a sinalização do governo de que a desmilitarização vai acontecer e terá prazo para ser concluída”, afirmou. Segundo Rodrigues, cerca de 90% dos 2.200 controladores militares pretendem aderir ao sistema civil. Militar ouvidos pelo Estado, porém, dizem que o porcentual será menor - cerca de 50% para cada lado.
A idéia é que o governo baixe um ato - medida provisória ou decreto - estabelecendo as regras para a migração do sistema. Para os atuais controladores, o critério deverá ser o de prova de títulos. Futuras contratações, só por concurso. De acordo com Rodrigues, os militares teriam de assinar um termo de adesão voluntária, perdendo a patente militar, e assinariam contrato com a futura agência que cuidaria do controle de tráfego aéreo.
Os que não quiserem migrar permaneceriam com suas patentes, mas seriam desligados da aviação civil e remanejados para o controle de tráfego aéreo das bases militares. “Lutamos muito por essa solução civil, mas a transição tem de ser feita com todas as cautelas para não haver o menor risco à segurança do tráfego aéreo”, ponderou Rodrigues.
Assinado na madrugada de ontem, num clima de grande tensão, o acordo também prevê anistia a todos os líderes e dirigentes da categoria punidos nos últimos seis meses, em conseqüência dos protestos e motins que se seguiram às investigações do desastre com o Boeing da Gol, em 29 de setembro. Outro ponto importante é a criação do plano de carreira da categoria no âmbito civil.
Embora não esteja explicitado na minuta do acordo, governo e controladores concordaram com a criação de uma gratificação emergencial, cujo valor ainda será discutido, a ser paga à categoria durante o tempo que durar a transição. Os controladores brasileiros têm uma das mais baixas remunerações na comparação com os estrangeiros. Ganham, em média, seis vezes menos que um colega europeu e nove vezes menos que um americano.
Para executivos das companhias aéreas, a desmilitarização do sistema é agora um processo irreversível. “Se o governo prometeu, vai ter de cumprir. Nós também vamos fiscalizar o andamento desse acordo com os controladores”, disse o dirigente de uma empresa do setor.
COLABOROU BRUNO TAVARES
Páscoa pode ter greve se acordo for descumprido
Isabel Sobral, BRASÍLIA
O advogado Normando Cavalcante, que defende os profissionais ligados à Associação Brasileira dos Controladores de Tráfego Aéreo (ABCTA), alertou ontem que a greve dos controladores de vôo poderá ser retomada caso o governo não cumpra alguns dos pontos do acordo firmado com a categoria na noite de sexta-feira.
Ele disse ter confiança de que o acordo será cumprido, mas advertiu: “Caso os controladores percebam que o governo vai descumprir o acordo, aí, sim, a Páscoa pode ser um inferno.” Cavalcante ponderou que os controladores têm consciência de que vários pontos do acordo, como a desmilitarização do controle aéreo, exigem tempo para serem colocadas em prática. A implementação do acordo começará a ser discutida na terça-feira entre representantes dos controladores de vôo e do Comando da Aeronáutica e interlocutores do governo. O advogado disse que um dos pontos que geram expectativa de ser atendidos rapidamente é a definição do valor da gratificação prometida pelo governo aos controladores.
Ao mesmo tempo, ele procurou tranqüilizar a população, dizendo que, se o acordo for integralmente cumprido, a população pode ficar confiante de que não haverá atrasos e cancelamentos de vôo na Semana Santa. Além da desmilitarização e do pagamento de gratificação, a lista de reivindicações da categoria inclui o retorno imediato dos representantes de associações afastados ou transferidos e a nomeação de um grupo que acompanhe as mudanças.
Presidente disse, em visita aos EUA, que o momento não permite ‘radicalização’ nem ‘soluções drásticas’
Denise Chrispim Marin, ENVIADA ESPECIAL, WASHINGTON
O presidente Luiz Inácio Lula da Silva empurrou para terça-feira a “decisão final” sobre o caos nos aeroportos brasileiros. Pouco antes de embarcar em um helicóptero da Força Aérea americana, que o levou a Camp David para seu encontro oficial com o presidente George W. Bush, Lula confirmou que desautorizou a prisão dos controladores de vôo amotinados anteontem por não contar com um “banco de reservas”. Também disparou elogios ao comandante da Aeronáutica, brigadeiro Juniti Saito, a quem isentou de qualquer responsabilidade pelo episódio.
Conforme justificou o presidente, o momento não permite “radicalização” nem “decisões drásticas” de nenhum dos lados do impasse. “Você assiste futebol na televisão? Você percebe que, quando um time entra em campo, tem sempre um banco de reservas de seis ou sete jogadores sentadinhos, ali, esperando a oportunidade?”, comparou o presidente, valendo-se de mais uma metáfora esportiva.
“Você só pode tomar uma decisão drástica se você tem uma equipe de substitutos. Ou seja, nós estamos vivendo uma situação de anomalia.” O presidente retornará de Washington e pousará na manhã de hoje em São Paulo com a perspectiva de que os vôos estejam normalizados em todo o País. Lula prometeu conversar amanhã, em Brasília, com o ministro da Defesa, Waldir Pires, o brigadeiro Saito, e o vice-presidente, José Alencar, para “encontrar uma solução”. “Na terça-feira, vamos tomar a decisão final”, declarou.
Ao ser questionado sobre o novo caos aéreo, o presidente lembrou que a crise nos aeroportos brasileiros se arrasta desde o final de setembro passado, quando ocorreu o choque de um jato Legacy com uma aeronave da Gol, que provocou a morte de 154 pessoas. Qualificou as recorrentes paralisações do transporte aéreo nacional como “um agravado problema de gestão” e um “problema estrutural”. Por fim, deixou claro que considerou “importante” atender as reivindicações apresentadas pelos controladores amotinados anteontem e iniciar a reestruturação do setor aéreo. “Não existe outro jeito. Nessa hora, não existe possibilidade de radicalização - nem dos controladores, nem do governo, nem da Aeronáutica.”
Quando deixou Recife em direção aos EUA, por volta das 13 horas da última sexta-feira, o presidente não tinha ainda sido informado do início do movimento dos controladores. Uma hora antes, os sargentos haviam divulgado um manifesto no qual anunciaram a greve de fome e o auto-aquartelamento e também declararam que não acreditavam em seus comandantes. Lula foi alertado sobre o agravamento da crise naquela noite, quando ainda estava a caminho de Washington. Do Airbus da Presidência, o Aerolula, determinou que o governo prosseguisse a negociação com os controladores e evitasse medidas mais radicais sugeridas pelos chefes militares, como a prisão dos amotinados.
Conforme relatou, ao chegar na Blair House, a residência oficial da Presidência dos Estados Unidos para visitantes ilustres, por volta das 22h30 (23h30, horário de Brasília), exigiu do ministro do Planejamento, Paulo Bernardo, do brigadeiro Saito, de Alencar e de Waldir Pires a solução do impasse daquele momento. Essas conversas se arrastaram até 1 hora (2 horas, de Brasília) e culminaram com o acordo selado pelo ministro Paulo Bernardo e os grevistas.
Na manhã de ontem, Lula tratou novamente do imbróglio com o ministro-chefe da Secretaria de Comunicação Social da Presidência, Franklin Martins, e com o seu chefe de gabinete, Gilberto Carvalho.
Apesar de ter desautorizado a punição aos controladores de vôo e de ter levado seu governo a aceitar as quatro reivindicações de grupo de militares, o presidente não deixou de expressar sua indignação com o movimento grevista. Lula argumentou que, por mais justa que fosse a demanda dos controladores, não poderia “aceitar que o comportamento de alguns pudesse deixar milhares e milhares de pessoas nos aeroportos por seis, sete, oito horas”. O presidente lembrou que, entre os afetados, havia crianças. E ressaltou que todos pagaram por uma passagem aérea e mereciam ser tratados com respeito.
Lula valeu-se de sua experiência à frente do Sindicato dos Metalúrgicos de São Bernardo para desqualificar o movimento dos controladores de vôo. “Quando eu era dirigente sindical e queria decretar greve em determinadas empresas, a gente sempre decidia não parar alguns setores que eram importantes para a continuidade da produção e do serviço”, afirmou. “As pessoas que têm uma função considerada essencial precisam ter mais responsabilidade que outras.”