Entrevista:O Estado inteligente

sexta-feira, abril 06, 2007

Onde o desastre já começou

Em nenhum outro lugar do mundo os efeitos
do calor são tão visíveis quanto no Ártico


Diogo Schelp, de Ny-Ålesund


A cobertura de gelo do Ártico atinge a sua extensão máxima no fim de março. Nesse período do ano, em média 15,7 milhões de quilômetros quadrados de gelo – quase duas vezes o Brasil – cobrem o oceano ao redor do Pólo Norte geográfico e se estendem sobre o mar a partir das costas da Groenlândia, do Canadá, da Rússia, do Alasca e do arquipélago de Svalbard. Normalmente, em março, os fiordes dessas ilhas norueguesas estão cobertos por uma camada compacta de gelo. Essa é a paisagem que se espera encontrar no Kongsfjorden, que banha o vilarejo de Ny-Ålesund, uma base científica dedicada ao estudo polar. No mês passado, quando VEJA visitou o local, o que se via era uma aberração climática: pelo quarto ano consecutivo, quase não há gelo sobre as águas do fiorde. "Seria necessário um período de comparação mais longo para termos certeza de que a falta de gelo no Kongsfjorden é culpa do aquecimento global", disse o geofísico alemão Sebastian Gerland, do Instituto Polar Norueguês, enquanto se preparava para embarcar em uma expedição para medir a espessura do gelo nos fiordes ao redor do arquipélago. "Mas não há dúvida de que a redução da área com gelo marinho no Ártico como um todo é um efeito da mudança climática pela qual a Terra está passando", completou Gerland. A superfície congelada de mar no inverno ártico, em 2005, foi quase 1 milhão de quilômetros quadrados menor do que o normal – o equivalente em área ao estado de Mato Grosso –, e a sua espessura média diminuiu 1,3 metro na década de 90.

Há consenso entre os cientistas de Ny-Ålesund de que o Ártico passa por uma ampla e rápida transformação, como não se vê em nenhuma outra parte. Esse processo decorre do que se poderia chamar de círculo vicioso. À medida que o aquecimento global diminui a área coberta por gelo e neve, mais e mais calor do Sol é absorvido pelas superfícies que ficaram expostas na terra e no mar. Outra causa de degelo é o impacto direto da poluição no efeito albedo, como é chamada a capacidade de refletir o calor da radiação solar. O depósito de fuligem sobre a neve, resultante da queima global de combustíveis fósseis e levada para o Ártico pelo vento, já reduziu em 3% o albedo da região. Devido a tudo isso, a temperatura no Ártico aumentou 2 graus no último século, o dobro da média mundial.

O calor rompeu o equilíbrio do gelo marinho, das geleiras e também do permafrost, a vasta região de solo permanentemente congelada nas áreas continentais dentro do Círculo Polar Ártico. Numa região onde a vida se dá em condições climáticas extremas, qualquer desequilíbrio tem efeitos devastadores para a fauna e a vegetação. Um exemplo: o período em que a água permanece congelada na Baía de Hudson, no Canadá, está agora três semanas mais curto. Com isso, reduziu-se a temporada de caça às focas, que vivem no gelo e são a presa predileta dos ursos-polares. Em menos de duas décadas, a fome deixou a população local de ursos-polares 20% menor. O vilarejo litorâneo de Shishmaref, no extremo norte do Alasca, tem existência comprovada de 4.000 anos, o que faz dele uma preciosidade arqueológica. Agora, por causa do sumiço do gelo marinho que protegia a praia, está ameaçado de ser engolido pelo mar. Numa única tempestade, a erosão causada pelas ondas fortes levou 15 metros do terreno da vila. Em todo o Ártico, o volume de chuva aumentou 8% nos últimos 100 anos, acelerando o derretimento da neve.

Os cientistas já conseguiram comprovar que muitas dessas mudanças estão relacionadas ao aquecimento global. Outras ainda dependem de pesquisas mais detalhadas. Por isso, as bases avançadas de estudos polares no Alasca, no Canadá, na Groenlândia, em Svalbard e na Sibéria fervilham com cientistas empenhados em entender melhor o que já se sabe e trazer à luz o que se desconhece sobre o Ártico. Em Ny-Ålesund, há oceanógrafos, biólogos, hidrólogos, glaciologistas e climatologistas, entre outros tantos especialistas de dez nacionalidades, empenhados em quase quarenta projetos de pesquisa – todos de alguma forma relacionados à compreensão do aquecimento global. O biólogo Haakon Hop, do Instituto Polar Norueguês, por exemplo, está interessado em entender como o aumento de temperatura da água afeta os zooplânctons, organismos minúsculos que estão na base da cadeia alimentar marinha, e os animais que deles se alimentam. Com quinze anos dedicados a pesquisas no Ártico, Hop nunca testemunhou tantas alterações no ambiente que estuda como agora. "Os cardumes de arenque, típicos do Mar do Norte, já são encontrados mais próximos do Oceano Ártico", diz Hop.

Aos sábados, os pesquisadores da vila norueguesa (população máxima de 150 pessoas) reúnem-se numa casa transformada em bar. No mês passado, o gelo colocado nos copos de uísque havia sido recolhido de pequenos icebergs no fiorde – na noite anterior, tinha se desprendido de uma geleira próxima. A piada entre os cientistas era que se tratava de uísque 12 anos com gelo 1 000 anos, a idade aproximada do glaciar. De modo geral, o humor dos pesquisadores é mais sombrio. Estão todos preocupados com a rapidez com que as geleiras de Svalbard estão perdendo volume. Os glaciares do arquipélago norueguês, que cobrem uma área equivalente à do estado do Alagoas, despejam 20 quilômetros cúbicos por ano de água doce no oceano. É muita água, mas não se compara ao que ocorre na Groenlândia, que sozinha contribui com 20% da elevação do nível dos oceanos. Em 2005, a ilha despejou no mar 200 quilômetros cúbicos de gelo.

Os pesquisadores esperam encontrar no comportamento das geleiras norueguesas um padrão que permita prever o que acontecerá com o manto de gelo da Groenlândia. O aumento no nível dos oceanos nas próximas décadas depende, basicamente, do equilíbrio do gelo da ilha dinamarquesa, que concentra pouco mais de 10% da água doce congelada existente no mundo. "Há 120.000 anos, quando a temperatura do ar era apenas 1 grau mais quente do que é hoje, o volume de gelo sobre a Groenlândia era dois terços do atual e o nível do mar estava 2 metros mais alto", diz o glaciólogo escocês Doug Benn, do Centro Universitário em Svalbard (Unis). Esse registro histórico mostra que as previsões mais aceitas sobre a elevação do mar talvez sejam conservadoras: o Painel Intergovernamental sobre Mudança Climática (IPCC), da ONU, prevê um aumento de, no máximo, 59 centímetros no nível dos oceanos até 2100, apesar de estimar uma temperatura 4 graus mais alta. "Essa previsão é otimista demais porque desconsidera o fator dinâmico dos glaciares. Quanto mais se movimentam, maiores os icebergs que eles despejam no mar", preocupa-se o glaciologista dinamarquês Carl Egede Bøggild, da Unis.

Os glaciares são rios de gelo que escorrem lentamente e perdem massa aos poucos. Uma geleira estável não diminui de tamanho porque suas perdas são compensadas pela queda de neve. Nestes tempos de desequilíbrio climático, contudo, praticamente todos os glaciares do planeta estão escorrendo mais rápido e perdendo volume. A velocidade do Helheim, na Groenlândia, saltou de 20 metros por dia em 2001 para os atuais 33 metros. Nesse curto período, a espessura da geleira perdeu 40 metros. "Quanto mais o glaciar afina, mais rápido ele tende a se movimentar e a perder gelo", diz o glaciologista americano Jack Kohler, do Instituto Polar Norueguês, em Tromsø.

Os pesquisadores estão atrás de um modelo matemático capaz de prever a quantidade de gelo que a Groenlândia perderá nas próximas décadas. Disso depende não só o nível dos oceanos como também o equilíbrio climático do planeta. Se o ritmo do derretimento aumentar, o enorme reservatório de água doce da Groenlândia poderá diluir a salinidade do mar. O resultado seria o enfraquecimento da corrente marítima do Golfo, cujo calor mantém amena a temperatura na Europa Ocidental. Não seria apenas um pesadelo para os europeus, mas um rompimento brutal do clima da Terra. Seria possível encontrar icebergs no litoral inglês, e a Alemanha teria um inverno tão rigoroso quanto o que atualmente ocorre no Canadá.

Não menos catastrófica é a perspectiva do derretimento do solo congelado que cobre 20% da superfície terrestre e chega a mais de 1 500 metros de profundidade na Sibéria. O permafrost armazena mais gás carbônico que todas as florestas temperadas e tropicais do mundo juntas. Quando se derrete, o solo do Ártico libera parte desse gás do efeito estufa, contribuindo para piorar o aquecimento global. A hidróloga alemã Julia Boike, do Instituto Alfred Wegener para Pesquisa Polar e Marinha, na Alemanha, faz medições periódicas de temperatura no permafrost do Alasca, de Svalbard e da Sibéria e está habituada com os sinais do derretimento do solo. "Há casas na Sibéria que estão desmoronando porque o chão simplesmente descongelou e afundou", diz Boike. Dela se ouve uma confissão alarmante: "Há tantas transformações ocorrendo ao mesmo tempo no Ártico que nós, cientistas, mal temos tempo de registrar e estudar".






Fotos Ken Graham/Getty Images, Paul Nicklen/National Geographic/Getty Images

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