Os sinais do aquecimento ainda são
discretos, mas os cientistas não vêem com
otimismo o futuro do continente gelado
Rafael Corrêa, da Península Antártica
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A primeira impressão que se tem ao navegar pela Antártica é que o aquecimento global ainda não chegou por lá. Paredões de gelo, com mais de 100 metros de altura, deixam acanhados os transatlânticos que levam turistas para ver o litoral do único continente intocado pela mão do homem. O que se pode dizer, então, dos pequenos navios científicos que passam meses navegando pela costa, coletando dados sobre o papel desempenhado no clima global pela região mais fria, mais seca, mais alta e com os ventos mais fortes do planeta? Na realidade, as mudanças climáticas também já são pesadamente sentidas por lá, ainda que em escala diferente da que ocorre no Ártico. Não há previsão, por exemplo, de que suas geleiras possam desaparecer nos próximos milênios. É um alívio que seja assim. Se todo o gelo que existe na Antártica se derretesse, o nível dos oceanos subiria 63 metros, alterando brutalmente o recorte costeiro do planeta.
O lugar onde o aquecimento global exibe maior intensidade é a Península Antártica, uma área pequena em comparação com o resto do continente. Com 1.300 quilômetros de extensão, a península chega próximo a Ushuaia, na Argentina, o ponto extremo da América do Sul. Nos últimos cinqüenta anos, a temperatura média na parte ocidental da península aumentou 3 graus, bem mais que no resto do mundo. Já se vê grama em locais que permaneciam cobertos de gelo o ano inteiro. As plantas não apenas se espalharam geograficamente, mas também já conseguem sobreviver à temporada de inverno, quando o normal seria que morressem com o frio, reaparecendo somente no verão. O aviso mais contundente de que o aquecimento global chegou ao continente gelado foi o colapso da plataforma de gelo Larsen B, em 2002. Esse pedaço de gelo com área duas vezes maior que a cidade de São Paulo e mais de 11.500 anos de existência, fragmentou-se em pequenos icebergs em apenas 35 dias. Hoje, sabe-se que a plataforma entrou em colapso em função dos ventos mais fortes e da elevação da temperatura do ar e da água, causados pelo aquecimento global. "Tudo está acontecendo muito rápido na península. Se quisermos entender o que pode ocorrer com a Antártica num futuro de temperaturas mais altas, é para lá que temos de olhar", diz Jefferson Cardia Simões, glaciologista e coordenador do Núcleo de Pesquisas Antárticas e Climáticas (Nupac), da Universidade Federal do Rio Grande do Sul.
Por estar numa latitude mais ao norte, a península possui temperaturas mais amenas do que a média de 50 graus negativos aferida na parte oriental do continente. Suas ilhas servem de colônia para pingüins e focas. A ilha Peterman é um desses berçários que abrigam a pouca vida selvagem que se aventura a viver na Antártica. Os principais moradores são os pingüins papua e os pingüins adélia. As duas espécies parecem dividir igualmente o espaço da ilha, mas nem sempre foi assim. Há poucos anos, Peterman era ocupada predominantemente pelos pingüins adélia. Com o aumento da temperatura, a quantidade de gelo marinho na região diminuiu, afetando os pingüins adélia, que começaram a migrar para locais mais frios ou morreram de fome. O fenômeno se repete por toda a Antártica e o resultado é que a população de pingüins adélia caiu um terço nos últimos 25 anos.
Em novembro, Simões irá à Antártica fazer perfurações para coletar amostras de gelo com dados sobre o clima da península há 500 anos. Perfurar o solo e o manto de gelo da Antártica é uma das melhores maneiras de descobrir se o que está acontecendo agora faz parte de um ciclo natural ou se de alguma maneira está sendo provocado pelo homem. A análise de cilindros retirados das montanhas de gelo da Antártica Oriental provou que os níveis de CO2 nunca estiveram tão altos nos últimos 720.000 anos. Foram colunas de sedimentos, rochas e fósseis que demonstraram que um dia a Antártica foi um continente com florestas subtropicais e até mesmo dinossauros. A importância das descobertas que as perfurações proporcionam é rivalizada somente pelo trabalho dos satélites.
Desde o fim da década de 70, quando os satélites começaram a ser utilizados para monitorar as regiões polares, eles cresceram em número e precisão. Com dispositivos especializados, como o ICESat, da Nasa, a agência espacial americana, é possível medir a espessura do manto de gelo com a precisão de centímetros. Foi através de imagens de satélite que os cientistas identificaram a aceleração do fluxo das geleiras. "Podemos dizer que existe uma Antártica antes e depois dos satélites. Hoje, dispomos dos meios para dizer se o manto de gelo está encolhendo ou crescendo", disse a VEJA Jay Zwally, engenheiro da Nasa que trabalha com o satélite ICEsat. Na Antártica Ocidental, que inclui a península, o gelo está encolhendo. No resto do continente, permanece estável.
Os cientistas sabem que, junto com as perfurações, os satélites são uma peça-chave para ampliar o conhecimento que se tem sobre a Antártica. O foco principal é determinar a rapidez com que o gelo vai se derreter num cenário de aquecimento global, já que a equação é simples: um mundo mais quente significa mais gelo derretendo e aumento do nível dos oceanos. O derretimento de todas as geleiras do continente, que guardam 90% de todo o gelo do mundo, é um quadro pouco provável nos próximos milhares de anos. Isso porque na parte oriental do continente, que concentra a maior parte do gelo, as temperaturas médias, abaixo dos 50 graus negativos, e o volume do manto de gelo estão estáveis. Ou, pelo menos, é o que pensam os cientistas, com base no que sabem agora. O climatologista americano David Bromwich, da Universidade Estadual de Ohio, recomenda prudência nas previsões. Disse ele a VEJA: "A verdade é que ainda temos muito que aprender antes de dizer com que rapidez o gelo vai se derreter".
A próxima plataforma a se romper deve ser a Larsen C. O colapso de plataformas não contribui para a elevação dos oceanos, porque essas massas de gelo já estão flutuando na água. O problema é que as plataformas funcionam como uma barreira natural para o gelo dos glaciares, que se forma sobre o continente e se move em direção ao oceano. Estudo recente publicado na revista Science mostrou que, depois do sumiço de Larsen B, a geleira passou a se movimentar numa velocidade de duas a seis vezes maior do que na época em que a plataforma retardava seu avanço. É esse gelo, preso nas geleiras, que contribui para a elevação dos oceanos. Pode não parecer assustador, quando se considera que a península concentra menos de 1% do gelo da Antártica. Mas o enfraquecimento das plataformas também está acontecendo na Antártica Ocidental, onde os cientistas identificaram glaciares fluindo mais rápido antes mesmo de as plataformas entrarem em colapso. Se todo o gelo dessa região fosse parar na água, o nível dos oceanos subiria 7 metros, o suficiente para inundar a orla do Recife.