O livro do jornalista Lawrence Wright mostra
como a Al Qaeda conseguiu transformar o
terror em nome do Islã em um fato internacional
Jerônimo Teixeira
Kenny Braun/AP | |
Lawrence Wright: show multimídia sobre a Al Qaeda |
Anunciado na semana passada como vencedor do Prêmio Pulitzer de não-ficção, O Vulto das Torres (tradução de Ivo Korytowski; Companhia das Letras; 504 páginas; 56 reais), do jornalista americano Lawrence Wright, é a reportagem mais extensa já realizada sobre a Al Qaeda e os ataques que o grupo promoveu nos Estados Unidos em 11 de setembro de 2001. O livro também examina detalhadamente as falhas dos serviços de inteligência americanos na prevenção dos atentados. Ex-professor da Universidade Americana no Cairo e repórter da revista The New Yorker, Wright trabalhou cinco anos na obra, entrevistando cerca de 500 pessoas. O final do livro é emblemático: descreve como uma figura que provavelmente seria o médico egípcio Ayman al-Zawahiri – mais do que o próprio Bin Laden, o grande ideólogo da Al Qaeda – conseguiu fugir do Afeganistão ocupado pelos americanos em março de 2002. Pulverizada em vários núcleos, a Al Qaeda continua ativa, como demonstram os recentes atentados a bomba na Argélia. E, assim como Bin Laden, Zawahiri até hoje não foi capturado.
Além do livro, a reportagem de Wright gerou uma espécie de show multimídia apresentado pelo próprio autor em um teatro de Nova York. My Trip to Al Qaeda (Minha Viagem à Al Qaeda) é um relato pessoal sobre a difícil experiência do jornalista. "É muito complicado entrevistar pessoas ligadas a movimentos terroristas. Eu nem sempre sabia exatamente com quem estava falando ou que intenções ocultas os entrevistados teriam", relatou Wright a VEJA (leia trechos da entrevista nos quadros). A personalidade de Bin Laden é, na medida do possível, elucidada no livro. Não é isenta de contradições: o homem que se propõe a destruir os Estados Unidos tolera que seus subordinados vejam filmes americanos e que seus filhos se divirtam com videogames, como qualquer criança ocidental. Gênio da autopromoção, Bin Laden é, a despeito de todos os seus protestos de fidelidade religiosa, um niilista, um homem sem programa político além da destruição. E é essa estranha atitude que Wright gostaria de entender melhor se um dia ficar frente a frente com o líder da Al Qaeda: "Se pudesse entrevistá-lo, perguntaria como ele imagina que tudo isso vai acabar".TERRORISMO UNIVERSAL
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HAVERIA UMA DIFERENÇA DE PERFIL DOS TERRORISTAS DA AL QAEDA EM RELAÇÃO A OUTROS MOVIMENTOS TERRORISTAS ISLÂMICOS? Sim, há. O Hamas, por exemplo, é um grupo nacionalista, com um programa restrito, sem aspirações mundiais. A Al Qaeda, ao contrário, já perdeu todas as bandeiras de vista, de tão universais que se tornaram suas pretensões. O único programa político que ela ainda tem é o ataque indiscriminado ao Ocidente. Nesse sentido, ela tem se tornado cada vez mais niilista, por mais contraditório que isso seja para um movimento que se pretende islâmico.
A SITUAÇÃO DOS PALESTINOS INTERESSA À AL QAEDA? Não muito. Se a crise entre israelenses e palestinos se resolvesse amanhã, Bin Laden ficaria arrasado, pois a Al Qaeda perderia um de seus grandes instrumentos de recrutamento. Trata-se, afinal, de uma fonte de ressentimentos inflamados que contagiam o coração de muitos muçulmanos.
O HOMEM QUE GLOBALIZOU A JIHAD
AP |
QUE TIPO DE HOMEM É BIN LADEN EM SUA VIDA PRIVADA? Bin Laden já teve cinco mulheres, das quais duas talvez ainda estejam com ele. Gerou mais de vinte filhos. Parece ser um pai carinhoso e tolerante. Ele deixa que seus filhos ouçam música ou pendurem quadros na parede – coisas que seus seguidores são proibidos de fazer. Ele é mais tolerante como pai do que como líder.
COMO "PENSADOR" DO TERRORISMO, ELE TEM ALGUMA ORIGINALIDADE EM RELAÇÃO A SEUS ANTECESSORES? Sim. Antes da Al Qaeda, houve vários grupos radicais islâmicos, mas eram todos nacionalistas em seus objetivos. Bin Laden fez algo inédito: ele internacionalizou seu movimento. Criou uma espécie de guarda-chuva, uma organização nova que abrigou muitos grupos diferentes – todos em oposição ao Ocidente, aos Estados Unidos. Essa foi sua grande contribuiçãoà jihad cultural.
BATE-BOCA COM EXTREMISTAS
Al-Jazzera/AP |
NO SEU TRABALHO DE REPORTAGEM, QUAL FOI O DIÁLOGO MAIS ATERRADOR QUE O SENHOR JÁ TEVE COM UM EXTREMISTA? Creio que foi uma discussão acalorada que tive em Birmingham, na Inglaterra, durante a iftar – a primeira refeição que os muçulmanos fazem depois do jejum do Ramadã. Eu estava com um grupo de radicais islâmicos. Um deles observou que era a favor do seqüestro e da decapitação das pessoas que trabalhavam para organizações humanitárias no Iraque. E isso foi bem na época em que seqüestraram Margaret Hassan, diretora da entidade humanitária Care International. Ela ainda estava viva (Margaret Hassan foi morta em novembro de 2004), e suas súplicas para que não a matassem estavam sendo transmitidas a toda hora pela Al Jazira. Quando ouvi aquele homem dizendo que apoiava o assassinato de pessoas como Margaret, eu me descontrolei. Não consegui me comportar como um repórter distanciado. Agi como um ser humano.
RECRUTAS DO TERROR
O QUE MOTIVA AS PESSOAS A ENGAJAR-SE EM GRUPOS COMO A AL QAEDA? Isso varia. Movimentos terroristas congregam tanto idealistas como psicopatas. Mas uma das principais razões é o senso de frustração, de desespero, de deslocamento cultural que domina muitos países do Oriente Médio. Um estudo revelador foi conduzido pelo psiquiatra Marc Sageman, que trabalhou para a CIA no Afeganistão. Ele traçou o perfil dos recrutas que treinavam nos campos da Al Qaeda naquele país. Eram jovens de classe média, com uma boa educação. Muitos falavam várias línguas. E não eram frutos de uma educação religiosa rigorosa. O que eles tinham em comum era o fato de se filiarem ao movimento fora de seu país de origem. O sentimento de deslocamento parece muito comum entre os terroristas. Eu mesmo encontrei esse perfil nas minhas entrevistas com extremistas.
O GUERREIRO DA PROPAGANDA
BIN LADEN REVELOU-SE COMO LÍDER NO AFEGANISTÃO, LUTANDO CONTRA OS SOVIéTICOS. COMO FOI SUA ATUAÇÃO NESSA ÉPOCA? Ele até lutou com bravura em certas ocasiões. Mas acabou entregando o comando a um colaborador que tinha mais habilidade militar. Bin Laden não é um grande líder no que diz respeito a habilidades organizacionais nem é um orador eloqüente. Na verdade, sua contribuição para a derrota dos soviéticos foi nula, mas ele conseguiu inflar sua importância. Sua passagem pelo Afeganistão é uma peça exemplar de relações públicas. Bin Laden é bom na propaganda.
PRECONCEITOS PERIGOSOS
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NO LIVRO, O SENHOR APONTA AS FALHAS DOS SERVIÇOS DE INTELIGÊNCIA AMERICANOS ANTES DOS ATENTADOS DE 11 DE SETEMBRO. ESSES PROBLEMAS FORAM CORRIGIDOS? Temo que hoje a situação esteja pior do que antes. O FBI afirma que, entre seus mais de 30 000 agentes, hoje existem 25 que falam árabe. Eu conversei com alguns deles e descobri que o curso de língua árabe que eles fizeram durou nove semanas. Jamais seriam capazes de interrogar um suspeito nessa língua. Estou batendo no FBI apenas porque é a mais aberta das agências de inteligência americanas – mas o mesmo se dá em todas elas. Descendentes de árabes que falam as línguas do Oriente Médio não são empregados por preconceito. São vistos como "risco para a segurança". O resultado é que a nossa segurança está de fato em risco, porque não empregamos as pessoas que têm mais condições de nos ajudar.
ERGUIDA DAS CINZAS
Fayez Nureldine/AFP |
QUAL A SITUAÇÃO ATUAL DA AL QAEDA? A organização dividiu-se em quatro grupos – há uma Al Qaeda no Iraque, uma na Europa, uma no Paquistão e uma no norte da África, esta responsável pelos recentes atentados na Argélia. Os líderes continuam vinculados à Al Qaeda do Paquistão. A tragédia é que, depois da batalha de Tora Bora, no Afeganistão, em dezembro de 2001, a Al Qaeda estava virtualmente morta. Pelo menos 80% de seus líderes haviam sido mortos ou capturados. Por muito tempo, ela continuou em um estado de zumbi. Mas a invasão do Iraque trouxe a Al Qaeda de volta à vida. Hoje, pode estar mais forte do que nunca. Seus santuários e campos de treinamento estão ressurgindo no Paquistão, em Mali e provavelmente também nas áreas sunitas do Iraque. É um desdobramento muito perigoso.