Entrevista:O Estado inteligente

sábado, abril 21, 2007

O Vulto das Torres, de Lawrence Wright

O monstro de perto

O livro do jornalista Lawrence Wright mostra
como a Al Qaeda conseguiu transformar o
terror em nome do Islã em um fato internacional


Jerônimo Teixeira


Kenny Braun/AP
Lawrence Wright: show multimídia sobre a Al Qaeda


Anunciado na semana passada como vencedor do Prêmio Pulitzer de não-ficção, O Vulto das Torres (tradução de Ivo Korytowski; Companhia das Letras; 504 páginas; 56 reais), do jornalista americano Lawrence Wright, é a reportagem mais extensa já realizada sobre a Al Qaeda e os ataques que o grupo promoveu nos Estados Unidos em 11 de setembro de 2001. O livro também examina detalhadamente as falhas dos serviços de inteligência americanos na prevenção dos atentados. Ex-professor da Universidade Americana no Cairo e repórter da revista The New Yorker, Wright trabalhou cinco anos na obra, entrevistando cerca de 500 pessoas. O final do livro é emblemático: descreve como uma figura que provavelmente seria o médico egípcio Ayman al-Zawahiri – mais do que o próprio Bin Laden, o grande ideólogo da Al Qaeda – conseguiu fugir do Afeganistão ocupado pelos americanos em março de 2002. Pulverizada em vários núcleos, a Al Qaeda continua ativa, como demonstram os recentes atentados a bomba na Argélia. E, assim como Bin Laden, Zawahiri até hoje não foi capturado.

Além do livro, a reportagem de Wright gerou uma espécie de show multimídia apresentado pelo próprio autor em um teatro de Nova York. My Trip to Al Qaeda (Minha Viagem à Al Qaeda) é um relato pessoal sobre a difícil experiência do jornalista. "É muito complicado entrevistar pessoas ligadas a movimentos terroristas. Eu nem sempre sabia exatamente com quem estava falando ou que intenções ocultas os entrevistados teriam", relatou Wright a VEJA (leia trechos da entrevista nos quadros). A personalidade de Bin Laden é, na medida do possível, elucidada no livro. Não é isenta de contradições: o homem que se propõe a destruir os Estados Unidos tolera que seus subordinados vejam filmes americanos e que seus filhos se divirtam com videogames, como qualquer criança ocidental. Gênio da autopromoção, Bin Laden é, a despeito de todos os seus protestos de fidelidade religiosa, um niilista, um homem sem programa político além da destruição. E é essa estranha atitude que Wright gostaria de entender melhor se um dia ficar frente a frente com o líder da Al Qaeda: "Se pudesse entrevistá-lo, perguntaria como ele imagina que tudo isso vai acabar".


TERRORISMO UNIVERSAL

Mohamad Torokman/Reuters

HAVERIA UMA DIFERENÇA DE PERFIL DOS TERRORISTAS DA AL QAEDA EM RELAÇÃO A OUTROS MOVIMENTOS TERRORISTAS ISLÂMICOS? Sim, há. O Hamas, por exemplo, é um grupo nacionalista, com um programa restrito, sem aspirações mundiais. A Al Qaeda, ao contrário, já perdeu todas as bandeiras de vista, de tão universais que se tornaram suas pretensões. O único programa político que ela ainda tem é o ataque indiscriminado ao Ocidente. Nesse sentido, ela tem se tornado cada vez mais niilista, por mais contraditório que isso seja para um movimento que se pretende islâmico.

A SITUAÇÃO DOS PALESTINOS INTERESSA À AL QAEDA? Não muito. Se a crise entre israelenses e palestinos se resolvesse amanhã, Bin Laden ficaria arrasado, pois a Al Qaeda perderia um de seus grandes instrumentos de recrutamento. Trata-se, afinal, de uma fonte de ressentimentos inflamados que contagiam o coração de muitos muçulmanos.


O HOMEM QUE GLOBALIZOU A JIHAD

AP

QUE TIPO DE HOMEM É BIN LADEN EM SUA VIDA PRIVADA? Bin Laden já teve cinco mulheres, das quais duas talvez ainda estejam com ele. Gerou mais de vinte filhos. Parece ser um pai carinhoso e tolerante. Ele deixa que seus filhos ouçam música ou pendurem quadros na parede – coisas que seus seguidores são proibidos de fazer. Ele é mais tolerante como pai do que como líder.

COMO "PENSADOR" DO TERRORISMO, ELE TEM ALGUMA ORIGINALIDADE EM RELAÇÃO A SEUS ANTECESSORES? Sim. Antes da Al Qaeda, houve vários grupos radicais islâmicos, mas eram todos nacionalistas em seus objetivos. Bin Laden fez algo inédito: ele internacionalizou seu movimento. Criou uma espécie de guarda-chuva, uma organização nova que abrigou muitos grupos diferentes – todos em oposição ao Ocidente, aos Estados Unidos. Essa foi sua grande contribuiçãoà jihad cultural.


BATE-BOCA COM EXTREMISTAS

Al-Jazzera/AP

NO SEU TRABALHO DE REPORTAGEM, QUAL FOI O DIÁLOGO MAIS ATERRADOR QUE O SENHOR JÁ TEVE COM UM EXTREMISTA? Creio que foi uma discussão acalorada que tive em Birmingham, na Inglaterra, durante a iftar – a primeira refeição que os muçulmanos fazem depois do jejum do Ramadã. Eu estava com um grupo de radicais islâmicos. Um deles observou que era a favor do seqüestro e da decapitação das pessoas que trabalhavam para organizações humanitárias no Iraque. E isso foi bem na época em que seqüestraram Margaret Hassan, diretora da entidade humanitária Care International. Ela ainda estava viva (Margaret Hassan foi morta em novembro de 2004), e suas súplicas para que não a matassem estavam sendo transmitidas a toda hora pela Al Jazira. Quando ouvi aquele homem dizendo que apoiava o assassinato de pessoas como Margaret, eu me descontrolei. Não consegui me comportar como um repórter distanciado. Agi como um ser humano.

RECRUTAS DO TERROR

O QUE MOTIVA AS PESSOAS A ENGAJAR-SE EM GRUPOS COMO A AL QAEDA? Isso varia. Movimentos terroristas congregam tanto idealistas como psicopatas. Mas uma das principais razões é o senso de frustração, de desespero, de deslocamento cultural que domina muitos países do Oriente Médio. Um estudo revelador foi conduzido pelo psiquiatra Marc Sageman, que trabalhou para a CIA no Afeganistão. Ele traçou o perfil dos recrutas que treinavam nos campos da Al Qaeda naquele país. Eram jovens de classe média, com uma boa educação. Muitos falavam várias línguas. E não eram frutos de uma educação religiosa rigorosa. O que eles tinham em comum era o fato de se filiarem ao movimento fora de seu país de origem. O sentimento de deslocamento parece muito comum entre os terroristas. Eu mesmo encontrei esse perfil nas minhas entrevistas com extremistas.

O GUERREIRO DA PROPAGANDA

BIN LADEN REVELOU-SE COMO LÍDER NO AFEGANISTÃO, LUTANDO CONTRA OS SOVIéTICOS. COMO FOI SUA ATUAÇÃO NESSA ÉPOCA? Ele até lutou com bravura em certas ocasiões. Mas acabou entregando o comando a um colaborador que tinha mais habilidade militar. Bin Laden não é um grande líder no que diz respeito a habilidades organizacionais nem é um orador eloqüente. Na verdade, sua contribuição para a derrota dos soviéticos foi nula, mas ele conseguiu inflar sua importância. Sua passagem pelo Afeganistão é uma peça exemplar de relações públicas. Bin Laden é bom na propaganda.

PRECONCEITOS PERIGOSOS

Stan Honda/AFP

NO LIVRO, O SENHOR APONTA AS FALHAS DOS SERVIÇOS DE INTELIGÊNCIA AMERICANOS ANTES DOS ATENTADOS DE 11 DE SETEMBRO. ESSES PROBLEMAS FORAM CORRIGIDOS? Temo que hoje a situação esteja pior do que antes. O FBI afirma que, entre seus mais de 30 000 agentes, hoje existem 25 que falam árabe. Eu conversei com alguns deles e descobri que o curso de língua árabe que eles fizeram durou nove semanas. Jamais seriam capazes de interrogar um suspeito nessa língua. Estou batendo no FBI apenas porque é a mais aberta das agências de inteligência americanas – mas o mesmo se dá em todas elas. Descendentes de árabes que falam as línguas do Oriente Médio não são empregados por preconceito. São vistos como "risco para a segurança". O resultado é que a nossa segurança está de fato em risco, porque não empregamos as pessoas que têm mais condições de nos ajudar.

ERGUIDA DAS CINZAS

Fayez Nureldine/AFP

QUAL A SITUAÇÃO ATUAL DA AL QAEDA? A organização dividiu-se em quatro grupos – há uma Al Qaeda no Iraque, uma na Europa, uma no Paquistão e uma no norte da África, esta responsável pelos recentes atentados na Argélia. Os líderes continuam vinculados à Al Qaeda do Paquistão. A tragédia é que, depois da batalha de Tora Bora, no Afeganistão, em dezembro de 2001, a Al Qaeda estava virtualmente morta. Pelo menos 80% de seus líderes haviam sido mortos ou capturados. Por muito tempo, ela continuou em um estado de zumbi. Mas a invasão do Iraque trouxe a Al Qaeda de volta à vida. Hoje, pode estar mais forte do que nunca. Seus santuários e campos de treinamento estão ressurgindo no Paquistão, em Mali e provavelmente também nas áreas sunitas do Iraque. É um desdobramento muito perigoso.


LIVROS
25 de abril de 2007

Trecho de O Vulto das Torres,
de Lawrence Wright

1. O mártir

Numa cabine de primeira classe de um navio de passageiros fazendo o trajeto de Alexandria, Egito, a Nova York, um escritor e educador frágil, de meia-idade, chamado Sayyid Qutb1 viveu uma crise de fé."Devo ir para os Estados Unidos como qualquer estudante normal com uma bolsa de estudos, com que só se come e dorme, ou devo ser especial?", ele se perguntou. "Devo me ater às minhas crenças islâmicas, enfrentando as várias tentações pecaminosas, ou devo me entregar às tentações ao meu redor?"2 Era novembro de 1948. O novo mundo assomava no horizonte, vitorioso, rico e livre. O viajante deixara para trás o Egito, em frangalhos e lágrimas. Nunca saíra de seu país natal. Nem era de bom grado que o deixava agora. O solteiro carrancudo era delgado e moreno, testa alta e inclinada e bigode semelhante a um pincel pouco mais estreito que a largura do nariz. Os olhos traíam uma natureza altiva que se ofendia facilmente. Ele sempre evocava um ar de formalidade, preferindo ternos escuros de três peças, apesar do sol abrasador do Egito. Para um homem tão zeloso de sua dignidade, a perspectiva de voltar à sala de aula aos 42 anos pode ter parecido aviltante.No entanto, tendo nascido numa aldeia cercada por muros de barro, no Alto Egito, já havia ultrapassado o modesto objetivo de tornar-se um funcionário público respeitável.

As críticas literárias e sociais que escreveu fizeram dele um dos autores mais populares de seu país. Também despertaram a fúria do rei Faruk, o monarca dissoluto do Egito, que assinara uma ordem para a sua prisão. Amigos poderosos e solidários providenciaram sua partida.3

Na época, Qutb ocupava um cargo confortável de supervisor no Ministério da Educação. Politicamente, era um nacionalista egípcio fervoroso e anticomunista, posição que o situava nas correntes predominantes da vasta classe média burocrática. As idéias que dariam origem ao que se denominaria fundamentalismo islâmico ainda não estavam completamente formadas em sua mente. Na verdade, ele mais tarde diria que nem mesmo era um homem muito religioso antes de começar aquela viagem,4 embora tivesse memorizado o Alcorão aos dez anos,5 e seus escritos haviam recentemente dado uma guinada para temas mais conservadores. Como muitos de seus compatriotas, foi levado a posições radicais pela ocupação britânica e odiava a cumplicidade do enfastiado rei Faruk. O Egito foi varrido por protestos antibritânicos, e facções políticas rebeladas estavam determinadas a expulsar as tropas estrangeiras do país - e talvez o rei também. O que tornava particularmente perigoso aquele desinteressante funcionário público de médio escalão eram seus comentários incisivos e potentes. Ele nunca chegara à linha de frente do cenário literário árabe contemporâneo, fato que o afligiu por toda a carreira. No entanto, do ponto de vista do governo, estava se tornando um inimigo irritantemente importante.


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