O saboroso livro que retoma Darwin para
examinar a história cultural das emoções
Jerônimo Teixeira
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O sorriso é universal. A expressão facial para a alegria é a mesma na mais gigantesca metrópole moderna e na mais isolada tribo selvagem. O mesmo vale para o choro, no outro extremo da palheta emocional. Ou para o ricto inconfundível de terror que se vê na Medusa de Caravaggio, reproduzida nesta página. O naturalista inglês Charles Darwin apontou essa constância em A Expressão das Emoções no Homem e nos Animais, livro de 1872. O clássico de Darwin serviu de mote para o saboroso Uma História das Emoções (tradução de Ryta Vinagre; Record; 420 páginas; 55 reais), do crítico cultural inglês Stuart Walton. A característica "transcultural" das intuições de Darwin atraiu Walton, que descobriu aí uma moral política para o século XXI: "Eu me oponho ao relativismo cultural, à idéia de que a democracia não poderia funcionar na Arábia Saudita porque a cultura dos árabes é diferente da nossa. Darwin demonstra que os seres humanos têm necessidades muito parecidas no mundo todo", disse Walton a VEJA. Seu livro é, portanto, uma história da permanência, mais do que da mudança. Fala de um mesmo desejo de expressão que pulsa da tragédia grega ao punk rock.
O título é talvez um pouco enganador: "história" sugere abordagem sistemática e cronológica. Walton – autor também de Out of It, uma "história cultural da intoxicação" (isto é, da manipulação das emoções pela via de drogas, legais ou ilegais) – segue um andamento mais livre. Seus dez capítulos, cada um deles dedicado a uma emoção, funcionam bem como ensaios independentes. Parte da graça do livro está no anedotário histórico-cultural acumulado pelo autor. O capítulo sobre o desgosto (no original, disgust, que seria mais bem traduzido por "nojo"), por exemplo, inclui uma história breve dos métodos utilizados pelos europeus para dispor de seus detritos corporais, dos repulsivos jarros despejados na calçada às instalações hidráulicas modernas.
Uma História das Emoções não se limita a essa miscelânea de curiosidades. Algumas linhas orientadoras mantêm a unidade do livro. A principal delas talvez seja o exame do significado político das emoções (veja quadro). É um terreno cheio de ambivalência: a mesma indignação raivosa que derruba governos corruptos instala regimes ainda mais opressivos, como se vê em tantas trajetórias revolucionárias. O capítulo sobre felicidade, nesse ponto, fica a meio caminho. Seu exame das perigosas promessas do pensamento utópico começa na República de Platão e se encerra na Utopia de Thomas More – não chega, portanto, a Marx e aos ideólogos socialistas que de fato inspiraram a desastrosa "utopia" soviética. As análises do papel da vergonha no sistema penal e das inusitadas relações entre nojo e filantropia são mais matizadas.
O livro insinua uma crítica à valorização contemporânea da espontaneidade a todo custo e às terapias da moda que pretendem ensinar seus pacientes a "liberar" suas emoções. Não, o homem contemporâneo não ficou mais rico ou feliz porque supostamente vive em uma cultura "expansiva". Uma História das Emoções percorre a obra de artistas e filósofos do passado, como Sófocles, Shakespeare, Beethoven, Schopenhauer. As emoções humanas podem ser sempre as mesmas, como Darwin propôs – mas nesses mestres elas são mais profundas.
Tantas emoções
O crítico inglês Stuart Walton examina o peso de diferentes sentimentos na história cultural
TRISTEZA e FELICIDADE
O fato de que o sofrimento é um estado universal – e bem mais comum do que a felicidade – é um dos problemas fundamentais da filosofia. A busca da felicidade muitas vezes se traduziu em ideais utópicos politicamente perigosos
MEDO
O terror expresso no rosto da Medusa decapitada no quadro de Caravaggio foi explorado por governos totalitários. Os governos que buscam inspirar o medo, porém, vivem eles mesmos no pavor de não sobreviver à reação dos cidadãos
RAIVA
Quando traduz a indignação diante de circunstâncias injustas, a raiva pode ser o motor de grandes mudanças sociais. Mas corre sempre o risco de se converter em uma nova fonte de terror revolucionário
LIVROS 11 de abril de 2007 |
Trecho de Uma História das Emoções, 1 - TER MEDO Mesmo antes da emoção do medo, como se observa na arqueologia lingüística do termo, havia o Medo, puro e simples. Ele existe objetivamente no mundo, quer gostemos disso ou não, como um produto, uma qualidade de que são dotados certos fenômenos. Um precipício batido pelo vento é de dar medo, como uma fera predatória faminta. É o fato de que o mundo está cheio desses medos que nos ensina a sensação de pavor com que nos aproximamos deles. O medo é a reação adequada a estas ameaças. Seu nome no inglês, fear, deriva da palavra em saxão arcaico que já parece um choro inarticulado, um uivo em que é compactado o significado pelo qual o termo vem a denotar não só uma coisa que deve nos causar apreensão, mas algo que especificamente está a nossa espera. Em todos os medos há uma sensação de espreita, do que pode acontecer. Os medos nos ensinam que nosso hábitat é minado de potencialidades desastrosas, mas precisamente porque o medo representa as coisas ruins que podem acontecer, mas igualmente as que podem não acontecer, ele também nos vence ao nos fazer temer o que não existe e o inexplicado. Apesar da armadura mental que o pensamento esclarecido de mais de meio milênio em tese nos legou, mesmo hoje as pessoas mais obstinadamente racionais podem se ver sucumbindo a um alvoroço de pânico com uma ocorrência inexplicável. Um som de arranhão em uma sala vazia. A porta que se fecha sozinha suavemente, quando nunca fez isso. O molho esquivo de chaves que aparece no meio do consolo da lareira, onde foi procurado primeiramente e muitas vezes desde então. Nestes momentos é sempre necessário um esforço quase físico para evitar que a mente tome a direção da ordem do paranormal, saturada momentaneamente pelo medo. Embora possamos estar prontos para desprezar estes acontecimentos considerando-os insignificantes, a lição que eles ensinam é de que, bem no fundo da psique de nossa espécie, está o instinto que transforma o medoreflexo em evidência de que há algo lá fora a ser temido. Tudo o que sustenta as operações da fé sistemática, e não tão sistemática - dos ocultismos da Nova Era ao Vaticano -, foi criado na infância paleolítica da humanidade como resultado do poder inescapável do medo primal. As formas de fé assim criadas pelo medo são um produto da adrenalina produzida por estímulos externos ameaçadores, que ocorrem em todas as espécies, combinada com a consciência e a imaginação humanas. Não só isso, mas nossa organização em grupos cooperativos, e portanto os primórdios do que pode ser reconhecido como sociedades, é atribuível ao mesmo medo perverso; e há um que, acima de todos os outros, exerce a mesma influência corrosiva em nossa alma que exercia quando não sabíamos quase nada do mundo. Andamos cautelosamente na presença da morte. Mais ou menos na época da Primeira Guerra Mundial, uma série de escavações realizada por arqueólogos perto da aldeia de La Ferrassie, na região francesa de Dordogne, revelou o que parecia ser um sepulcro familiar em estado incomumente bem conservado. Datava de um período conhecido dos paleontólogos como musteriano, isto é, cerca de 50 mil anos atrás. O sítio continha seis esqueletos - os de um homem, uma mulher idosa, três crianças e um bebê. Não só o número dos enterrados, mas também a evidência de uma preparação meticulosa revelada pelos sepultamentos marcaram um novo estágio em nossa compreensão da orientação espiritual dos povos paleolíticos. O homem tinha sido deitado com o braço e a perna direitos puxados para perto do corpo, enquanto a idosa tinha sido ainda mais flexionada, com as duas pernas dobradas no corpo e o braço direito curvado e apertado contra a parte superior do peito. Uma das crianças, que morreu entre os cinco e os seis anos, foi sepultada em uma posição semelhante. Para desconcerto inicial dos escavadores, a cabeça desta criança não estava ali, mas foi desenterrada mais tarde sob uma pesada laje de calcário a cerca de um metro de distância do corpo. A natureza ritualística destes sepultamentos pré-históricos, e de outros semelhantes que vieram à luz, indica que os cadáveres foram cuidadosamente confinados em uma posição da qual uma pessoa viva não poderia escapar. Depois foram confiados à terra sob camadas de pedras, e às vezes de cinza quente, enterrados juntos muito provavelmente porque eram da mesma família. A inferência a ser extraída é de que os mortos foram agrilhoados enquanto foram sepultados, de forma que não pudessem voltar para pilhar os sobreviventes ou - ainda mais perturbador - tentar contaminá-los com a condição pálida e rígida à qual sucumbiram. No caso da última criança, talvez por algum motivo peculiar à vida dela, a remoção da cabeça e seu ocultamento sob uma laje pesada de pedra parecem sugerir um desejo de garantir que o morto não pudesse se reconstituir espontaneamente e voltar. Se fosse possível, como sustentam alguns psicólogos da evolução, decidir quais são as emoções mais antigas da humanidade, o medo certamente teria a mais forte pretensão. Para nossos ancestrais Australopithecus, arrastando-se pelas savanas africanas em grupos estreitamente unidos, o mundo era um lugar intimidador e mal-assombrado, em que tempestades violentas, a ameaça do fogo, doenças insondáveis e sofrimento tinham um poder apavorante sobre eles. Assim foi que, no início, essa falta de compreensão deu origem ao terror primal. Com o desenvolvimento, entre dois milhões e um milhão e meio de anos, das formas mais reconhecivelmente proto-humanas, o Homo habilis e o H. erectus, veio a tentativa mais primitiva de encontrar sentido neste mundo assustador através de forças naturais antropomorfizantes. O estalar do trovão parecia agora ser a ira de poderes elementares que estavam descontentes, mas que podiam ser aplacados por rituais. Pode-se observar um processo imaginado de causa e efeito, pelo qual a realização de oferendas ou de outros comportamentos simbólicos curaria uma doença ou derrotaria uma tempestade. Mesmo que estas práticas só às vezes fossem bem-sucedidas, foram o bastante para que se tornassem sistemáticas. Na época da transição do Paleolítico Médio para o Superior, por volta de 40 mil anos atrás, este comportamento simbólico levou à criação de duas grandes instituições da história humana: a arte e a religião. Esta foi a época da última grande era glacial, e que pensamos ser o verdadeiro início da história registrada. Se considerarmos que a religião, pelo menos na Europa e na África do Norte, passou de uma crença em muitos e variados deuses nos modelos egípcios e greco-romanos para a unidade centralizada de um só deus no judaísmo, no cristianismo e no islamismo, então estamos começando pelo lugar errado. Embora os sistemas de crença politeístas certamente tenham surgido em épocas pré-históricas, é quase certo, como chegaram a afirmar paleontólogos como Johannes Maringer no período pós-guerra, que foram precedidos pela crença em um ser supremo - e pelo medo dele. A evidência de sacrifício animal e o sepultamento de partes de corpos de animais, bem como a descrição de cenas de caçada em pinturas rupestres do Paleolítico Superior, revelam uma unidade de propósito: eles pretendiam solicitar os favores de um dispensador divino de boa fortuna na caçada. Nas cavernas escuras como breu nos mais profundos recessos de refúgios rochosos em que estas pessoas residiam, sulcando à luz de tochas, as partes desmembradas de ursos da caverna foram dispostas em expiação de um deus que podia conceder o sucesso na caça, e portanto a sobrevivência da tribo. Além das oferendas, representações pictóricas de caçada foram pintadas nas paredes e nos tetos da caverna em ocre vermelho e barro preto, imagens de uma riqueza fabulosa como as descobertas no final do século XIX em Altamira, ou aquelas faixas em Lascaux, no sudoeste da França, em 1940. Várias figuras pequenas da forma feminina grávida - em calcário, pedra-sabão e marfim - também vieram à luz, valendo-se de alguma invocação mágica da fertilidade, de forma que, em uma época de escassez e gelo, os rebanhos caçados de que dependia a tribo se reproduzissem o suficiente para garantir a própria sobrevivência. Se é este medo, porém, que motiva a reviravolta para uma teologia primitiva, o que exatamente temiam nossos ancestrais paleolíticos a não ser os elementos imprevisíveis? Sabemos, a partir de restos como ossos carbonizados e depósitos de cinzas nas cavernas, que o fogo já era usado para cozinhar, iluminar e para a segurança. Encontros violentos com tribos rivais teriam sido poucos e distantes, uma vez que a terra era esparsamente povoada e todos os grupos eram nômades. E, ao contrário de seus ancestrais primitivos, o caçador paleolítico, embora fosse peripatético, sabia como fazer habitações razoavelmente seguras em abrigos de pedra e cavernas de sua paisagem. O terror primal que ele ainda sentia, e que motivava todas as suas práticas devocionais e culturais, é o mesmo terror que de certa forma nos motiva: o medo da própria morte e da morte da família. Quando os primeiros hominídeos aprenderam a controlar o fogo, não só puderam cozinhar a carne, tornando-a de digestão muito mais fácil, como se mantiveram aquecidos, mas eles também se protegiam muito da predação de animais selvagens que vagavam em campo aberto - lobos, hienas, panteras e o medonho tigre dentes-de-sabre com seus caninos maciçamente desenvolvidos. A domesticação do fogo deve ter tido um profundo impacto na consciência dos proto-humanos. O fogo já era uma característica da vida humana no Paleolítico Inferior, há 200 mil anos. Em vez de ficar totalmente à mercê do ambiente, eles agora o dominavam pelo menos parcialmente. Em um rodapé a uma de suas últimas obras, O malestar na civilização (1930), Sigmund Freud postula que os meios de dominar o fogo devem ter surgido quando os homens descobriram que podiam apagá-lo urinando nele, e foi o indivíduo que escolheu renunciar ao prazer erótico deste possível comportamento homossexual competitivo, poupando o fogo e encontrando uma forma de transportá-lo, o fundador de um grande salto cultural. Qualquer que seja a explicação, o controle do fogo é um marco na libertação do medo primal. Para a humanidade do Paleolítico, porém, a morte não parecia suscetível a esta engenhosidade. Seguia o próprio rumo, consumindo vorazmente enquanto vagava, e deve portanto ter sido considerada mais poderosa do que os seres vivos. A evidência que temos na forma de sepultamentos em cavernas (que, desde a Segunda Guerra Mundial, tornou-se enormemente mais copiosa) sugere que os povos da era glacial que realizavam estes enterros rituais elaborados não acreditavam necessariamente que qualquer mudança além da física operava-se na morte. O frio rigor mortis e a decomposição do cadáver não podiam deixar de ser percebidos, mas parece provável que os companheiros do morto não pensassem que ele deixara de viver. Por outro lado, podem ter sentido que, neste estado de animação permanen- temente suspensa, o morto bem pode ter sido capaz de afetar a continuidade da existência orgânica daqueles a quem deixou. Será que foi assim que o estado de morte se disseminou? Certamente isto explica a ocorrência repetida de posições de sepultamento em que o morto era entregue ao solo em atitudes de restrição. Os cadáveres descobertos na posição agachada originalmente teriam sido amarrados, os laços há muito apodrecidos. Muitos foram colocados de cara para baixo. Na costa mediterrânea, no que agora é a Itália, foi descoberta uma idosa presa com força, na posição fetal, nos braços de um menino em sua adolescência. O corpo do rapaz parece ter sido disposto propositalmente como um meio de evitar que a idosa escapasse. Pode até ser que a prática do próprio sepultamento fosse uma tentativa de trancar o morto, lacrando na terra, junto com ele, qualquer influência perniciosa que ele pudesse estender aos vivos. Para estes humanos primitivos, a morte era a única coisa inevitável em seu mundo, apesar de seu momento exato de ocorrência parecer aleatório. Talvez o deus que dispensava a sorte durante a caçada também dispensasse a vida e a morte, nas várias formas de doenças, de predação por animais carnívoros e de fome na pior das condições. Esta força invisível não deveria ser mais temida do que os raios de má sorte que caíam sobre eles? Foi lugar-comum na psicologia da evolução por pelo menos oitenta anos depois da publicação de A origem das espécies (1859) que a formulação de uma crença religiosa sistemática tornou as forças naturais compreensíveis aos humanos primitivos. No estabelecimento do deus (e depois deuses) possuidor do fogo, do inverno e assim por diante, o rude mundo ao qual estavam sujeitos tornou-se sistemático - e, de certa forma, confortavelmente familiar. Foi apenas quando dois filósofos alemães da Escola de Frankfurt, Theodor Adorno e Max Horkheimer, escreveram sua Dialética do esclarecimento (1944), que surgiu a idéia de que, longe de estabelecer uma comunicabilidade tranqüilizadora com a natureza como concebia a tradição humanista, o desenvolvimento da crença religiosa na verdade criou os meios para um medo impregnado muito maior e mais profundo. Além do fenômeno do mundo natural, havia um superser todopoderoso, irado e vingativo, em cujas mãos o golpe inesperado de luz e o devastador incêndio na floresta eram meras ferramentas, mas cuja natu- reza não podia, por definição, ser conhecida. Todos os esforços votivos devem ser direcionados ao apaziguamento Dele ou Deles. |
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