Entrevista:O Estado inteligente

sábado, abril 14, 2007

A guerra dos "tijolões" legais


Um autor recém-chegado desafia dois
pesos-pesados do mercado de livros jurídicos


Marcelo Marthe


Lailson Santos
Costa Machado: "Não há código tão completo quanto o meu no Brasil"



Há uma guerra em curso num nicho peculiar do mercado editorial, o dos livros jurídicos. Pode-se chamá-la de guerra dos "tijolões" – referência aos caudalosos volumes nos quais especialistas em direito comentam códigos legais. Embora passe despercebida da maioria do público, ela envolve somas vultosas de dinheiro e eminências desse universo. A principal delas é o jurista Theotonio Negrão. Morto em 2003, aos 86 anos, ele é autor de uma edição para lá de tradicional do Código de Processo Civil brasileiro. É a obra desse tipo mais vendida no país: 1,5 milhão de exemplares desde seu surgimento, em 1974. Lançado em 1994, o código que leva a assinatura de Nelson e Rosa Nery, um casal de professores de direito da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, tem sido seu grande concorrente. No ano passado, venderam-se 30.000 unidades dele. E agora surge um novo jogador. Advogado e professor da Universidade de São Paulo, Antônio Cláudio da Costa Machado dedica-se à análise do código desde os anos 90 e já havia feito vários livros sobre o tema. Em setembro passado, fez sua aposta mais ousada: lançou um catatau para competir de igual para igual com as duas grifes. Dispõe de uma arma que, acredita, fará a diferença: num único volume, oferece mais leis e mais informações sobre elas do que ambos. Está-se diante de uma disputa de pesos-pesados: seu livro tem 2.688 páginas e 2,5 quilos, contra 2.290 páginas e 2,2 quilos do similar de Negrão, seu maior concorrente. "Eu o respeito. Mas não há código jurídico tão completo quanto o meu no Brasil", diz.

Costa Machado lança seu ataque num momento em que esse mercado se beneficia da expansão do universo do direito no Brasil. Somando-se advogados, juízes e promotores aos estudantes da disciplina, tem-se um exército de 1,4 milhão de pessoas – que tende a inflar com a abertura de cursos universitários (eles já são 1.038, cinco vezes mais que no início da década). Segundo estimativas, no ano passado as editoras do setor venderam 6 milhões de exemplares e faturaram 300 milhões de reais. Os códigos são seu maior filão. Ferramentas essenciais para todos os "operadores do direito", eles ganham reedições todos os anos.

Fabiano Accorsi
Gouvêa, com retrato de Negrão: continuador da obra

O Código de Processo Civil, conjunto de quase 3 000 dispositivos que rege a maioria dos processos judiciais, é um campeão de procura nas livrarias. Mais ainda pelo fato de que nos últimos anos a legislação passou por grandes reformas. Entre outubro de 2005 e fevereiro passado, dez leis alteraram 410 artigos do "CPC". Isso obrigou editoras e autores a malabarismos para manter seus títulos atualizados. Em dezembro passado, a promulgação da lei da reforma das execuções extrajudiciais (os ritos processuais que envolvem a cobrança de cheques ou notas promissórias) levou Costa Machado a se enfurnar por 49 dias em seu escritório para escrever sobre os 250 dispositivos alterados. Um encarte de 200 páginas teve de ser incorporado às pressas a seu código.

Negrão celebrizou o formato desses livros. Junto de cada artigo, há referências práticas sobre sua aplicação, extraídas de sentenças e outros textos. Os autores que surgiram na cola do pioneiro ampliaram a receita, oferecendo comentários teóricos. "Como os profissionais vivem na correria, oferecer uma análise é crucial", diz Costa Machado. Em relação à obra dos Nery, que também contém comentários, ele acredita que sua maior vantagem está na estratégia. Esses livros oferecem um pot-pourri que inclui não só o código em si, mas também outras leis relacionadas. Enquanto ele investiu em reunir tudo num único volume, o casal desmembrou suas análises em vários.

Até recentemente, dizia-se que nenhum juiz tomava uma decisão sem antes dar uma folheada no código de Theotônio Negrão. Já não é mais tão comum ouvir isso, mas o prestígio do livro continua grande. Depois que o autor morreu, uma equipe liderada por seu braço-direito, José Roberto Ferreira Gouvêa, continuou atualizando o livro. "Negrão deixou todas as instruções para que a obra fosse perpetuada", diz Gouvêa. Com audácia de recém-chegado, Costa Machado põe em dúvida essa idéia. "O autor se foi, é questão de tempo para o código desaparecer", afirma.

Costa Machado tem razão numa coisa. Assim como escrever um dicionário, esses livros são tarefa de uma vida e requerem uma dose de obsessão. Antes de convencer a Manole (que tem tradição no campo médico e só agora começa a desbravar a seara do direito) a encampar seu "tijolão", ele bateu na porta de seis editoras – entre elas a Saraiva, líder do mercado, que não embarcou no projeto. Antes de publicá-lo, a Manole persuadiu o autor a fazer uma versão reduzida que vendeu 30.000 exemplares em três anos e teve a primeira tiragem de sua nova edição esgotada em duas semanas. Costa Machado mantém-se um jurista à moda antiga: redige todos os comentários a mão. Ele tem 47 anos – mas faz questão de aparentar mais. "Nesse mercado, parecer velho ajuda a vender."


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