Um autor recém-chegado desafia dois
pesos-pesados do mercado de livros jurídicos
Marcelo Marthe
Lailson Santos |
Costa Machado: "Não há código tão completo quanto o meu no Brasil" |
Há uma guerra em curso num nicho peculiar do mercado editorial, o dos livros jurídicos. Pode-se chamá-la de guerra dos "tijolões" – referência aos caudalosos volumes nos quais especialistas em direito comentam códigos legais. Embora passe despercebida da maioria do público, ela envolve somas vultosas de dinheiro e eminências desse universo. A principal delas é o jurista Theotonio Negrão. Morto em 2003, aos 86 anos, ele é autor de uma edição para lá de tradicional do Código de Processo Civil brasileiro. É a obra desse tipo mais vendida no país: 1,5 milhão de exemplares desde seu surgimento, em 1974. Lançado em 1994, o código que leva a assinatura de Nelson e Rosa Nery, um casal de professores de direito da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, tem sido seu grande concorrente. No ano passado, venderam-se 30.000 unidades dele. E agora surge um novo jogador. Advogado e professor da Universidade de São Paulo, Antônio Cláudio da Costa Machado dedica-se à análise do código desde os anos 90 e já havia feito vários livros sobre o tema. Em setembro passado, fez sua aposta mais ousada: lançou um catatau para competir de igual para igual com as duas grifes. Dispõe de uma arma que, acredita, fará a diferença: num único volume, oferece mais leis e mais informações sobre elas do que ambos. Está-se diante de uma disputa de pesos-pesados: seu livro tem 2.688 páginas e 2,5 quilos, contra 2.290 páginas e 2,2 quilos do similar de Negrão, seu maior concorrente. "Eu o respeito. Mas não há código jurídico tão completo quanto o meu no Brasil", diz.
Costa Machado lança seu ataque num momento em que esse mercado se beneficia da expansão do universo do direito no Brasil. Somando-se advogados, juízes e promotores aos estudantes da disciplina, tem-se um exército de 1,4 milhão de pessoas – que tende a inflar com a abertura de cursos universitários (eles já são 1.038, cinco vezes mais que no início da década). Segundo estimativas, no ano passado as editoras do setor venderam 6 milhões de exemplares e faturaram 300 milhões de reais. Os códigos são seu maior filão. Ferramentas essenciais para todos os "operadores do direito", eles ganham reedições todos os anos.
Fabiano Accorsi |
Gouvêa, com retrato de Negrão: continuador da obra |
O Código de Processo Civil, conjunto de quase 3 000 dispositivos que rege a maioria dos processos judiciais, é um campeão de procura nas livrarias. Mais ainda pelo fato de que nos últimos anos a legislação passou por grandes reformas. Entre outubro de 2005 e fevereiro passado, dez leis alteraram 410 artigos do "CPC". Isso obrigou editoras e autores a malabarismos para manter seus títulos atualizados. Em dezembro passado, a promulgação da lei da reforma das execuções extrajudiciais (os ritos processuais que envolvem a cobrança de cheques ou notas promissórias) levou Costa Machado a se enfurnar por 49 dias em seu escritório para escrever sobre os 250 dispositivos alterados. Um encarte de 200 páginas teve de ser incorporado às pressas a seu código.
Negrão celebrizou o formato desses livros. Junto de cada artigo, há referências práticas sobre sua aplicação, extraídas de sentenças e outros textos. Os autores que surgiram na cola do pioneiro ampliaram a receita, oferecendo comentários teóricos. "Como os profissionais vivem na correria, oferecer uma análise é crucial", diz Costa Machado. Em relação à obra dos Nery, que também contém comentários, ele acredita que sua maior vantagem está na estratégia. Esses livros oferecem um pot-pourri que inclui não só o código em si, mas também outras leis relacionadas. Enquanto ele investiu em reunir tudo num único volume, o casal desmembrou suas análises em vários.
Até recentemente, dizia-se que nenhum juiz tomava uma decisão sem antes dar uma folheada no código de Theotônio Negrão. Já não é mais tão comum ouvir isso, mas o prestígio do livro continua grande. Depois que o autor morreu, uma equipe liderada por seu braço-direito, José Roberto Ferreira Gouvêa, continuou atualizando o livro. "Negrão deixou todas as instruções para que a obra fosse perpetuada", diz Gouvêa. Com audácia de recém-chegado, Costa Machado põe em dúvida essa idéia. "O autor se foi, é questão de tempo para o código desaparecer", afirma.
Costa Machado tem razão numa coisa. Assim como escrever um dicionário, esses livros são tarefa de uma vida e requerem uma dose de obsessão. Antes de convencer a Manole (que tem tradição no campo médico e só agora começa a desbravar a seara do direito) a encampar seu "tijolão", ele bateu na porta de seis editoras – entre elas a Saraiva, líder do mercado, que não embarcou no projeto. Antes de publicá-lo, a Manole persuadiu o autor a fazer uma versão reduzida que vendeu 30.000 exemplares em três anos e teve a primeira tiragem de sua nova edição esgotada em duas semanas. Costa Machado mantém-se um jurista à moda antiga: redige todos os comentários a mão. Ele tem 47 anos – mas faz questão de aparentar mais. "Nesse mercado, parecer velho ajuda a vender."