Daniel Piza
Há muita coisa interessante em O Cheiro do Ralo, filme de Heitor Dhalia baseado em livro de Lourenço Mutarelli, com roteiro de Mutarelli e Marçal Aquino. Selton Mello, numa interpretação admirável pelo modo como não deixa que seu personagem se transforme numa caricatura, faz um comprador de bugigangas, Lourenço, obcecado pela bunda de uma garçonete. Por seu escritório passa uma galeria de 'freaks', de gente estranha, xarope ou drogada, desesperada pelo dinheiro que ele pode pagar sem o menor critério objetivo - restando a ela apelar sempre ao conteúdo 'afetivo' da peça.
À medida que vê seu poder aumentar, estimulado por 'um olho que vê tudo' que carrega no bolso para mostrar aos outros, Lourenço vai se viciando no cheiro do ralo do banheirinho atrás de sua mesa. E caem de vez as fronteiras entre valor de troca e valor de uso, entre o que é mercado e o que é necessidade. Apesar da irregularidade, algumas cenas são excelentes, como a da mulher que diz o tempo todo 'eu sou casada' para, digamos, valorizar sua cotação. A história faz pensar em Robert Crumb e Angeli, no humor negro de Robert Coover ou Ivan Lessa (por que ninguém filma Garotos da Fuzarca?), no cinema de Tarantino e outros. É 'trash', 'udigrudi', um misto de HQ e filme B. Os cenários são feitos de muros e objetos desgastados, a fotografia esmaecida, e alguns diálogos usam repetições e mal-entendidos dignos do teatro do absurdo .
O final, porém, põe quase tudo em risco. Não vou contá-lo, mas acho que é moralista ao sugerir uma punição para a 'egotrip' de Lourenço. E termina, retroativamente, acentuando no filme a sensação de leveza, de humor fácil, que tanto tem agradado às platéias. É como se fosse para chocar e divertir a burguesia ao mesmo tempo. E é como se desse margem a muitas teses - alegoria do Brasil, crítica ao consumismo, a mulher como objeto - em vez de ir a fundo em sua própria situação. Sob o visual de cartum, corre uma narrativa bastante tradicional. Em todo apocalíptico, para variar, há um otimista - o que talvez explique a obsessão do cinema nacional (e das demais artes) por marginais e maníacos. Nem por isso deixe de ver.
DE LA MUSIQUE
Em geral, mas especialmente em cidades como São Paulo, passar por 'culto' é cultuar vinhos, romances policiais e jazz. O jazz, mais ainda que os vinhos, costuma reunir adoradores como se fossem um clubinho fechado; eles só ouvem isso, só falam disso e se deliciam com microinformações, com a memorização de datas e nomes, quanto mais obscuros melhor. Mas o que o jazz tem de mais bonito é justamente sua abertura - como se pode notar assistindo a um documentário como Salvando o Jazz, de Leslie Moorehead (a ser reexibido hoje no festival É Tudo Verdade), e sobretudo lendo um livro como Kind of Blue, de Ashley Kahn (editora Barracuda).
O documentário é sobre o fotógrafo Herman Leonard e sua hesitação em voltar para New Orleans depois da devastação do Katrina . Seu acervo foi parcialmente atingido e ele se mudou para Los Angeles. Em três visitas à sua cidade, conta as histórias de quem viu todos os grandes desde os anos 50 e mostra as fotos ótimas que tirou de Miles Davis, Frank Sinatra ou Billie Holiday. New Orleans é berço e símbolo do jazz por sua mistura cultural e por seu espírito libertário. (Na mesma sessão, é possível ver uma preciosidade: as imagens inéditas de Pixinguinha e sua banda captadas por Thomas Farkas em 1954, no show de inauguração do Parque do Ibirapuera. A musicalidade nata e aprimorada de Pixinguinha e parceiros como o flautista Benedito Lacerda são tocantes.)
O livro é uma narrativa minuciosa dos anos que antecedem e das sessões de gravação do LP Kind of Blue, de Miles Davis e seu sexteto, em 1959. Ashley Kahn teve acesso às matrizes e documentos inéditos e situa muito bem as características que fizeram lendário o disco. A participação de dois Evans sem parentesco se revela essencial: Gil Evans, o produtor e arranjador, que mostrou a Miles a música erudita moderna; e Bill Evans, o pianista, de grande formação teórica, que descortinou para ele as virtudes do 'cool', dos silêncios sugestivos. Cada um dos músicos tinha contribuição a dar. E a idéia de que eles simplesmente entraram no estúdio e gravaram de improviso, num 'take' só, cai por terra.
Já no prefácio de Jimmy Cobb, a ênfase do livro é na formação musical séria e intensa de todos: as influências de nomes como Charlie Parker, Dizzy Gillespie, Lester Young, Louis Armstrong e tantos mais; a paixão de Miles, por exemplo, por Ravel, Bartók, Stravinski; a necessidade de combinar os estilos sem condenar as individualidades. A bateria com textura de Cobb, o baixo com swing de Paul Chambers, o colorido bebop de Cannonball Adderley, a harmonia 'dobrada' de Bill Evans, os longos e lentos solos de Miles, a ponte entre eles por um John Coltrane mais introspectivo - está tudo ali, esmiuçado. Não existe improviso sem estudo. Para 'andar na corda bamba', como Miles descreve sua música sem tempos marcados, é preciso treinar bastante.
RODAPÉ
O livro Então Você Pensa Que É Humano?, do historiador Felipe Fernández-Armesto (Companhia das Letras), trata do assunto mais quente nos meios intelectuais avançados: a relação entre biologia e cultura. Ele destaca o que chama de 'continuidades' entre a espécie humana e as outras espécies animais, tentando derrubar o lugar-comum de que nos distinguimos pela linguagem ou pela razão. Em sua opinião, essas diferenças existem, mas são de grau. Daí a importância da cultura, do comportamento. Nossa capacidade lingüística não seria a mesma sem a história de sua sofisticação pela prática, desde os primeiros grunhidos dos neandertais. Com isso, o autor se afasta dos colegas de sua área que não lêem Darwin e, ao mesmo tempo, critica a visão de psicólogos que acham que é possível explicar a moral pela tendência genética, como (cito eu) Steven Pinker, que diz que os homens são mais infiéis porque sua sobrevivência depende da dispersão seminal.
Fernández-Armesto diz que não se pode dizer que a natureza humana se define pelo social. (Aqui comete o erro inverso ao de Pinker: ao afirmar que não podemos traçar a fronteira nítida entre homem e animal, critica o aborto, ignorando as variáveis socioeconômicas da questão.) Ao mesmo tempo, lemos em revistas como Nature pesquisas que mostram que a moralidade é um atributo intrínseco à natureza humana. Grupos de Harvard e Iowa apontaram na semana passada que o córtex pré-frontal, local preferencial da consciência articulada, é também onde se manifestam 'emoções sociais' como compaixão, vergonha e culpa. O social e o biológico se confundem, como já mostrara Matt Ridley em O Que nos Faz Humanos. A diferença de grau, se não nos torna uma espécie à parte (pois temos 95% dos genes iguais aos do macaco), tem uma série de conseqüências peculiares. Para o bem e para o mal.
POR QUE NÃO ME UFANO (1)
É divertido ler os defensores da TV Lula, a ser comandada por Franklin Martins (que repetia na TV Globo todas as noites, no auge da crise do mensalão, que 'a origem do dinheiro não está comprovada', como se Marcos Valério vivesse de vento), dizendo que o Brasil precisa de uma BBC, de uma TV estatal que não faça o jogo do mercado, dos programas de auditório, etc. Nem Pollyana acreditaria que a TV Lula queira ou possa ser uma BBC.
POR QUE NÃO ME UFANO (2)
Pelas leituras que estão sendo feitas da nova medição do PIB pelo IBGE, inclusive por economistas e consultores renomados, os problemas do Brasil parecem ter ficado bem menores. A carga tributária 'caiu' para 35%; a relação entre dívida e PIB, para 45%; menos investimentos e menos superávit primário não atrapalham o desenvolvimento. Em breve a meta do governo Lula de crescer 5% ao ano poderá ser atingida, mesmo que a do ano passado, corrigida, tenha sido de 3,7%. Com isso, reformas ficam menos urgentes - e a da Previdência já vinha sendo adiada, pois novos cálculos também mostraram um buraco menor. Crescemos menos que a média mundial, a indústria não investe nada, a infra-estrutura está à beira do colapso... mas, maravilha! Ou, como cheguei a ler, estamos 'em céu de brigadeiro', sem atraso nenhum nos vôos!
POR QUE NÃO ME UFANO (3)
A natureza brasileira é a mais bonita do mundo. O Brasil é a décima economia do planeta. Paulo Coelho é xingado no Brasil, mas elogiado no exterior. O brasileiro é o povo mais alegre que existe. Cacá Diegues é um dos melhores cineastas do mundo. A Osesp é uma das melhores orquestras do mundo. A TV brasileira é a melhor do mundo. Oscar Niemeyer é o melhor arquiteto do mundo. Caetano Veloso é o maior cantor do mundo.
O que é isso? Dia da Mentira...
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