Entrevista:O Estado inteligente

sexta-feira, abril 06, 2007

Crise aérea Como os militares peitaram Lula

Voando às escuras

Lula atropela a Aeronáutica, cria uma crise com
os militares e é enquadrado pela caserna – mas
o país segue sem uma solução para o apagão aéreo


Otávio Cabral e Diego Escosteguy

Christian Hoehn/Getty Images, Andre Dusek/AE
MEDINDO FORÇA
O presidente com o brigadeiro Saito (à dir.) e os demais membros da cúpula das Forças Armadas: eles peitaram Lula e ganharam a parada

O que levou o presidente Lula a ceder tão gentilmente aos controladores de vôo amotinados nos aeroportos do país no dia 30 de março, concordando em dar-lhes compensações salariais e revogando-lhes uma ordem de prisão dada pela cúpula da Aeronáutica? O que levou o presidente Lula, dias depois, a chamar os controladores de irresponsáveis e traidores, cancelando correções salariais e autorizando prisões em caso de nova rebelião? Em sua explicação pública para tamanha guinada, Lula saiu-se com justificativas contraditórias. Primeiro, disse que, ao saber do motim dos sargentos, estava a bordo do Aerolula rumo aos Estados Unidos e não recebera um "quadro completo" da situação. Depois, encarregou seus assessores de espalhar que o recuo se explicava porque, no auge da crise, não tinha alternativa além de ceder aos controladores, sob pena de manter os aeroportos do país paralisados. Por fim, em reunião com aliados no Palácio do Planalto, disse que se sentia "traído" pela categoria. "Fui apunhalado pelas costas. Esperaram eu sair do país." O que Lula não disse é que o principal motivo de ter mudado tão radicalmente de posição foi outro: os militares peitaram o presidente – e ganharam a parada.

Assim que teve sua ordem de prender os controladores de vôo cancelada por Lula, o comandante da Aeronáutica, o brigadeiro Juniti Saito, reuniu-se com um grupo de oficiais, assessores jurídicos e dois representantes do Superior Tribunal Militar (STM). A reunião aconteceu no 9º andar do prédio da Aeronáutica, na Esplanada dos Ministérios. Na discussão, ponderou-se que a decisão de Lula poderia resultar numa acusação por crime de responsabilidade. Afinal, no artigo 7º da lei que define crime de responsabilidade prevê-se punição para a autoridade que venha a "incitar militares à desobediência à lei ou infração à disciplina". Com essa poderosa ameaça na manga, o brigadeiro convocou outra reunião, para a manhã seguinte, com os nove brigadeiros que compõem o alto-comando. Nesse encontro, discutiram como ampliar o arsenal para enfrentar Lula. A primeira decisão foi que o Ministério Público Militar, afinado com a cúpula da Aeronáutica, processaria os rebelados, a despeito das promessas do presidente de que não haveria punição. "A punição dos grevistas sempre foi questão de honra. Não voltaremos atrás nem com ordem do papa", disse a VEJA um integrante do alto-comando.

AE
A CENTRAL DA CRISE
Controle de vôo em Brasília, no momento do motim dos sargentos

Na mesma reunião, os brigadeiros decidiram ainda resistir a outra reivindicação dos sargentos amotinados que Lula mandara atender: a desmilitarização do controle de tráfego aéreo. Atualmente, os controladores de vôo e os responsáveis pela defesa aérea compartilham uma parte dos equipamentos. Os militares decidiram, ali, que os equipamentos passariam a ser usados somente pela defesa aérea. Também decidiram suspender o treinamento de novos controladores, uma tarefa hoje exclusiva da Aeronáutica, e listaram os benefícios que mandariam cortar dos rebelados: moradia funcional, transporte de casa para o trabalho, assistência médica e alimentação – tudo, hoje, cedido pela Aeronáutica. Por fim, Saito disse que, se Lula mantivesse a decisão de ceder tudo aos amotinados, ele entregaria o cargo. Os demais presentes – com uma só divergência, a do brigadeiro José Américo dos Santos – também disseram que entregariam o cargo ao presidente. "Olha só a situação em que eu cheguei", comentou o brigadeiro Saito. "Posso ser o comandante da Aeronáutica com a permanência mais curta da história."

O pacote todo – a suspeita de crime de responsabilidade e a retaliação à desmilitarização – foi apresentado a três interlocutores do presidente Lula: o deputado Arlindo Chinaglia, presidente da Câmara, e os ministros Waldir Pires, da Defesa, e Walfrido Mares Guia, das Relações Institucionais. Lula foi devidamente informado de tudo no próprio sábado, quando ainda estava em Washington. Ao desembarcar de volta ao Brasil, no domingo de manhã, o presidente já sabia que transformara o apagão aéreo numa crise militar – e partiu para o recuo. Logo que chegou, Lula telefonou para o brigadeiro Saito e fez um discurso conciliatório. Começou atribuindo a culpa ao seu negociador, o ministro Paulo Bernardo, do Planejamento, que fora escalado para falar com os controladores amotinados em Brasília e ofereceu a rendição completa do governo – inclusive assinando uma nota em que prometia, em nome do presidente, que não haveria punição, mas depois negou solenemente o compromisso. Na conversa telefônica com o brigadeiro, Lula disse que seu ministro se excedera nas concessões.

AJB/RIO
IMAGEM DO PASSADO
Soldados do Exército ocupam base da Aeronáutica na rebelião dos sargentos em 1963

Diante da firmeza com que os militares agiram, o presidente Lula voltou atrás em tudo: autorizou prisões em nova rebelião, cancelou os aumentos salariais e não editou a medida provisória prevendo a desmilitarização do setor aéreo. Parece uma solução, mas não é. "Lula não resolveu o apagão aéreo e ainda criou uma crise militar. Transformou um problema em dois. Operou o milagre da multiplicação das crises", avalia o cientista político e historiador Octaciano Nogueira, da Universidade de Brasília. A crise com os militares não tem parentesco em termos de gravidade com a revolta promovida pelos sargentos da Aeronáutica em 1963, que defendiam a elegibilidade dos militares. "Mas talvez seja a crise mais séria desde que o país voltou a ter eleições presidenciais diretas, em 1989", diz Octaciano Nogueira. Em contraste com a atual lambança, os governos passados conseguiram tratar com harmonia assuntos caros aos militares. O presidente Fernando Collor, por exemplo, logrou acabar com o famigerado SNI sem provocar a ira dos militares. O presidente Fernando Henrique, igualmente sem sobressaltos, criou o Ministério da Defesa.

Em boa medida, a crise da semana passada é resultado da inabilidade do presidente Lula em tomar decisões. A própria crise aérea já dura seis meses, e, ao longo desse período, sempre que as circunstâncias exigiram uma pronta decisão, o presidente titubeou – e cada vacilo correspondeu a um prolongamento do caos (veja o quadro na pág. 62). Seu hábito de adiar ao máximo o momento de tomar uma decisão parece ter surgido nos tempos de sindicalista no ABC paulista. Ali, Lula forjou seu modo de fazer política, nas reuniões do sindicato dos metalúrgicos com as montadoras de automóveis, em que conciliação e paciência são virtudes essenciais na mesa de negociação. No exercício da Presidência da República, tais características transformam-se em defeitos. O comandante de uma nação deve lançar mão de sua autoridade sempre que necessário, mas isso parece soar aos ouvidos de Lula como um chamamento à truculência. "A ingenuidade e a irresponsabilidade política demonstradas por Lula na crise aérea são características dessa república sindicalista que está no poder", diz a filósofa Maria Sylvia de Carvalho Franco, da Universidade Estadual de Campinas. "Em determinadas situações, como a dos amotinados, simplesmente não se pode negociar. É preciso assumir responsabilidade e tomar as devidas providências."

Ao somar sua proverbial inapetência por decidir às nomeações equivocadas, Lula contribui pesadamente para o caos atual. Nem se fale do ministro Waldir Pires, da Defesa, que já deu provas cabais de sua inadequação ao cargo – e a quem Lula resiste em demitir. A passagem do deputado Carlos Wilson pela presidência da Infraero quase destruiu a estatal, transformada num monumento à corrupção. A rapinagem impossibilitou, por exemplo, reformas essenciais na pista do Aeroporto de Congonhas, o mais movimentado do país. Na Agência Nacional de Aviação Civil (Anac), dos cinco diretores, quatro não têm nenhuma experiência no setor – tanto que são jocosamente chamados pelos próprios assessores de "pilotos sem brevê". O dado mais desalentador é que, com tudo isso, o apagão aéreo entra no feriado da Páscoa do mesmo tamanho, se não maior, que antes. Os controladores estão revoltados com o governo, que não cumpriu suas promessas – e, embora estejam amedrontados pela ameaça de punições, mostraram força para parar o país a qualquer momento. Os militares, por sua vez, estão convencidos de que o presidente é capaz de lhes ceifar a autoridade com uma ligeireza inaudita. E o país permanece sem que o governo tenha até agora apresentado um plano consistente para superar o caos aéreo. É um vôo cego.

Fotos Victor Soares/Agência Brasil, Wilton Junior/Ae, Vivi Zanatta/AE e Alan Marques/Folha Imagem

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