O GLOBO - 02/06/11
Há uma forma de se aprovar uma obra polêmica na democracia: com transparência e capacidade de convencimento. Infelizmente, não foi o que o Ibama escolheu para a usina de Belo Monte. Preferiu passar por cima de si mesmo, reduziu suas próprias exigências e aceitou o "parcialmente cumprido" para condicionantes que ele mesmo havia estabelecido.As 40 condicionantes viraram 23. O presidente do Ibama, Curt Trennepohl, não explicou a química com que condensou exigências; deve ser com o mesmo truque com que empacotava ontem perguntas dos jornalistas que tinham que ser feitas em bloco. Assim, várias questões recebiam uma resposta, que sobrevoava pontos levantados.
Nada demais para um órgão que postou ontem em seu site relatório em que escreve com frases assim: "Essa condicionante foi considerada parcialmente atendida." A exigência em questão se referia à qualidade da água na região. O que é uma água de qualidade parcialmente boa?
Relatório fluido e respostas apressadas foram as escolhas do órgão regulador do meio ambiente para aprovar a licença de implantação de Belo Monte. Assim, o Ibama autorizou a mais polêmica das obras amazônicas. As outras duas obras, menos controversas, as do Rio Madeira, já enfrentaram casos de mortes, incêndios em canteiro de obras, denúncias de trabalhadores, aumento da criminalidade na região e elevação de preço. Belo Monte nem começou e já se sabe que o valor inicialmente estabelecido de R$19 bilhões subiu para R$26 bi sem sinais de que vai se contentar com esse bom bocado. Não se sabe quem será o dono do empreendimento porque foram tantas as empresas que abandonaram o projeto que o consórcio precisará de novos voluntários, como a Vale. A mineradora, como se sabe, teve sua direção escavada para ocupar a vaga da Bertin. Agora falta achar substitutos para a Serveng, Cetenco, Mendes Júnior, J.Malucelli, Galvão, e Contern. Mas o Cardeal - Valter Cardeal, presidente do Conselho de Administração da Norte Energia, o mesmo que fez uma ponta na campanha eleitoral - disse que a obra começa já e garantiu: "está tudo certinho". Se é o Cardeal que garante é o caso de se dizer amém.
Não se produz energia sem impacto ambiental, mas o debate contemporâneo é como produzir com menos impacto e menos risco, porque de energia não podemos prescindir. A hidrelétrica do Rio Xingu tem volume impressionante de dúvidas em todas as áreas: do projeto de engenharia, do custo fiscal, da viabilidade econômica, do regime hídrico, da coesão do consórcio, do volume de energia. Tem uma coleção de perguntas sobre o impacto ambiental da obra e do seu entorno. As dúvidas bem respondidas reduziriam riscos e impactos. Tratadas como foram vão elevar os problemas em torno da hidrelétrica.
Há inúmeras instituições e pessoas que reclamariam fosse qual fosse o comportamento do Ibama. Por isso, para fazer melhor juízo, deve-se ler o texto do próprio governo. Quem lê o documento no site do Ibama se impressiona com a superficialidade das considerações. A condicionante 2.9, só para citar uma, estabelece que algumas ações de educação, saúde e saneamento teriam que ser feitas antes das obras. Não foram. A conclusão é que ela está "parcialmente atendida" porque "apenas parte das obras foi iniciada" e "algumas estão atrasadas." Destacou ainda como "mais preocupante o estágio das obras de saneamento na sede de Altamira e Vitória do Xingu, cujas obras ainda não teriam sido iniciadas, e as inconsistências nos cronogramas de implantação dos esgotamentos sanitários nas localidades de Belo Monte e Belo Monte do Pontal." Ou seja, o Ibama exigiu, a empresa não cumpriu, o Ibama escreveu que é "preocupante" mas deu a licença. E ontem o presidente do órgão se dizia orgulhoso com o feito. Com efeito!
A condicionante 2.13 estabelece que o Rio Xingu tem que continuar navegável e todos os afluentes da Volta Grande do Xingu "respeitando os modos de vida daquelas comunidades." Essa também está "parcialmente atendida". O que será um rio parcialmente navegável, ou um parcial respeito ao modo de vida de uma comunidade indígena? É 10% ou 90%?
O Ibama só concedeu a licença prévia a Belo Monte depois de estabelecer essas condições. Não foi imposição de ninguém. E é o próprio Ibama que passa por cima de si mesmo e estabelece que o parcialmente é tão bom quanto o totalmente cumprido.
O cuidado é porque uma obra desse porte, que vai ser construída para produzir 11,2 mil MW e vai produzir de fato 4,6 mil MW, que formará lago de 500 km de extensão, que vai alagar terras em três municípios, que mudará a vazão de um rio, que vai abrir um canal de 100 km no meio da floresta e que levará milhares de trabalhadores para o local precisa sim de precauções.
A certa altura do documento, quando fala das linhas de transmissão, o texto admite que a empresa apresentou apenas um "traçado orientativo", mas devia ter apresentado "projeto básico de engenharia com seu traçado definitivo sobre imagem de alta resolução e discriminação de faixas de servidão e acessos a serem eventualmente abertos." Mesmo assim foi dada a licença. Um pouco desorientado esse traçado escolhido pelo Ibama.