FOLHA DE SÃO PAULO - 23/06/11
Concordo com o projeto de descriminalizar o consumo de maconha, mas o uso da erva não é sempre inócuo
NA TERÇA, 14 de junho, a Folha publicou, na Primeira Página, as imagens de um homem de paletó e gravata que comprava e fumava um cachimbo de crack, numa rua do centro de São Paulo.
No último domingo, Suzana Singer, ombudsman do jornal, em sua coluna, perguntou: "Por que a Folha decidiu expor dessa forma um suposto viciado?". A Secretaria de Redação respondeu: "A política do jornal vinha sendo não resguardar a identidade dos usuários de crack em locais públicos. Não vimos motivo para alterarmos o padrão porque a personagem, desta vez, vestia paletó e gravata".
Em suma, a reportagem queria mostrar que "o fenômeno do crack não se confunde com a pobreza e não atinge apenas moradores de rua". A reportagem notava, aliás, que, entre os "usuários eventuais, que vão à região para fumar uma pedra", há até "senhores com cerca de 60 anos vestindo terno".
De repente, dei-me conta de que, ao longo dos anos, vi dezenas de fotografias de drogados errando pela cracolândia, mostrados sem disfarce, mas não tenho memória de seus rostos. É como se eles não fossem indivíduos -apenas genéricos "noias", como eles são chamados pelas ideias paranoicas que os acometem. No entanto, o engravatado da foto de terça-feira era diferente: ele era reconhecível, singular -talvez porque sua aparência deixava supor que ele não tivesse se transformado (ainda?) num noia.
O crack é hoje o protótipo da droga que leva rapidamente à perdição. Será que a foto do engravatado mostra que existem usuários de crack que não se tornam noias? Será que é possível um uso lúdico do crack?
Não sei dizer, mas, ao ler as memórias de Bill Clegg, "Retrato de um Viciado Quando Jovem" (Cia. das Letras), qualquer leitor pode sentir quase na pele a prepotência com a qual a fissura se instala ao centro da vida de um usuário de crack, por mais engravatado que seja.
O texto é comovedor, pela ingenuidade do viciado e de nós, leitores, que, como o viciado, inevitavelmente, a cada vez, acreditamos que ele voltará à sua vida depois de só mais um cachimbo. Comovedor e também exasperante: como é que o cara não consegue se controlar e conciliar sua vida amorosa e profissional com uma tragada de vez em quando? "Segura tua onda, rapaz", a gente fica a fim de gritar.
Trivialidade: a virulência da fissura, assim como a natureza da dependência, é diferente para cada droga. Engravatado à parte, o crack transforma quase imediatamente seus consumidores em adictos, enquanto há pessoas que, durante a vida toda, fumam só um cigarro ou um baseado por semana.
Outra trivialidade: talvez tão importante quanto as qualidades específicas de cada droga seja o fato de que, por alguma diferença de personalidade e disposição, há usuários que se perdem na toxicomania e outros que parecem nunca correr esse risco.
A clínica com adolescentes me ensinou isto: em geral, quem se vicia não é tanto quem acha sua vida dolorosa ou injusta, mas quem a acha chata, ou seja, quem não consegue se interessar por sua própria vida.
É possível se drogar porque a vida já é uma festa, e, quem sabe, com mais uma bola, ela se torne mais alegre. Essa conduta é sempre menos nociva da que consiste em drogar-se pela incapacidade de achar graça na vida que se tem. Quem se droga porque acha a vida chata tende a trocar a vida pela droga.
Nos últimos dias, fala-se muito da descriminalização da maconha. Estreou "Quebrando o Tabu", de Fernando Grostein; houve a intervenção de Fernando Henrique Cardoso (que é, aliás, âncora do filme de Grostein), e houve a liberação das marchas da maconha pelo STF. Vários leitores pediram que expressasse minha opinião.
Aqui vai: concordo com o projeto de descriminalizar o consumo de maconha, mas discordo de quem afirma que qualquer uso de maconha seria inócuo. Nos adolescentes, por exemplo, um consumo diário e intenso (solitário, já de manhã) é frequentemente o sinal de uma depressão que é MUITO difícil vencer, uma vez que ela se instala.
Entendo que alguém, mofando num tédio mortal (e inexplicado), chegue à conclusão de que a vida sem maconha é uma droga. Mas, infelizmente, em regra, a droga aprofunda o vazio que ela é chamada a compensar ou corrigir. Ou seja, talvez a vida sem maconha seja uma droga, mas a maconha sem vida também é.
Entrevista:O Estado inteligente
- Índice atual:www.indicedeartigosetc.blogspot.com.br/
- INDICE ANTERIOR a Setembro 28, 2008
Arquivo do blog
-
▼
2011
(2527)
-
▼
junho
(310)
- Serra: até as paredes sabem sobre Mercadante
- Nem tanto ao mar Dora Kramer - Dora Kramer
- Mais coerência Celso Ming
- Pressionada MERVAL PEREIRA
- Pão de Açúcar-Pão francês MIRIAM LEITÃO
- Pão de Açúcar-O cofre e os negócios JANIO DE FREITAS
- O que é Estado laico? IVES GANDRA MARTINS FILHO
- Amigo ou inimigo, o jogo continua SERGIO FAUSTO
- Crônica ou parábola? ROBERTO DaMATTA
- Indecentes úteis DORA KRAMER
- Exorbitâncias do BNDES Editorial - O Estado de S.P...
- Encruzilhada MIRIAM LEITÃO
- Sem convencer Merval Pereira
- A pergunta ANTONIO DELFIM NETTO
- A Europa compra tempo Celso Ming
- Regime diferenciado e imoral José Serra
- Sigilo para incompetência? Rolf Kuntz
- Veja Edição 2223 • 29 de junho de 2011
- Verdes e cidadania MERVAL PEREIRA
- O tamanho da sombra MIRIAM LEITÃO
- Mundo bizarro José Paulo Kupfer
- Um brasileiro na FAO Editorial- O Estado de S.Paulo
- Os avanços tecnológicos e as novas formas de guerr...
- Bandidagem agrária - Xico Graziano
- GOVERNO SÉRGIO CABRAL: O REI ESTÁ NU !
- É mais investimento Celso Ming
- Redução de danos Dora Kramer
- A competência generosa José Serra
- Coisas estranhas Paulo Brossard
- FHC e o carcereiro ROBERTO POMPEU DE TOLEDO Revist...
- Falácias e verdades MAÍLSON DA NÓBREGA Revista Veja
- No Reino dos Coliformes CLAUDIO DE MOURA CASTRO Re...
- MINISTÉRIO DE ALOPRADOS REVISTA VEJA
- Segredos de liquidificador MELCHIADES FILHO
- Diga aí, Cabral! RICARDO NOBLAT
- Não existe almoço de graça LUIZ FELIPE PONDÉ
- Água no etanol JOSÉ ROBERTO DE TOLEDO
- Sinal vermelho na Petrobrás EDITORIAL O Estado de ...
- Segredo de Estado e corrupção Carlos Alberto di Fr...
- Como surge o separatismo Paulo R. Haddad
- Paulo Renato sabia o que fazer na Educação e perse...
- Razões que a razão desconhece FERREIRA GULLAR
- Os oráculos MIRIAM LEITÃO
- Depois do dilúvio de dólares VINICIUS TORRES FREIRE
- Sejamos civilizados DANUZA LEÃO
- Eliane Cantanhêde Hackers pela ética
- A Era dos hackers Alberto Dines
- Ideologias Merval Pereira
- Suspense grego Editorial Estadão
- A ficha caiu Adriano Pires e Abel Holtz
- Itália e Brasil, aproximações Luiz Sérgio Henriques
- Presos na teia de aranha Gaudêncio Torquato
- Esboços de uma obra capital José Arthur Giannotti
- Desonestidade é cultura João Ubaldo Ribeiro
- Obama aciona as reservas Celso Ming
- Em nome da Copa Dora Kramer
- Alimento e petróleo assustam Alberto Tamer
- O visto de Battisti é ilegal Editorial O Estado de...
- Obama aciona as reservas Celso Ming
- Inquietação na Grã-Bretanha Gilles Lapouge
- A política vai mudar KÁTIA ABREU
- Redes & redes! Cesar Maia
- Cabral, o bom amigo FERNANDO DE BARROS E SILVA
- Laranja madura na beira da estrada... Sandra Caval...
- Na contramão VALDO CRUZ
- Governabilidade MERVAL PEREIRA
- Crise de confiança Celso Ming
- Segredo é para quatro paredes Fernando Gabeira
- Disputa tecnológica Merval Pereira
- O Supremo e o custo do emprego VINICIUS TORRES FREIRE
- Antes da queda DORA KRAMER
- Proposta irresponsável O Globo Editorial
- O grande momento de FH Rogério Furquim Werneck
- A luta do século Nelson Motta
- Fed diz que fez o que podia Alberto Tamer -
- Governo reage:: Merval Pereira
- Sem eira nem beira DORA KRAMER
- Drogas e gravatas CONTARDO CALLIGARIS
- A promiscuidade na vida pública EDITORIAL
- Gregos e bárbaros MIRIAM LEITÃO
- Festa macabra DEMÉTRIO MAGNOLI e ADRIANO LUCCHESI
- Muito além do Big Mac JOSÉ SERRA
- Os sigilos e a presidente EDITORIAL O Estado de S....
- Alegria e farsa nos mercados VINICIUS TORRES FREIRE
- Recesso à vista! VALDO CRUZ
- Metas e inflações MIRIAM LEITÃO
- O último tango em Atenas ALEXANDRE SCHWARTSMAN
- Jabuti maroto DORA KRAMER
- Elogio ao sociólogo que virou tese JOSÉ NÊUMANNE
- Desigualdade persiste MERVAL PEREIRA
- Desmandos e calotes ROLF KUNTZ
- O piano e o banquinho ELENA LANDAU
- O problema do passado Roberto DaMatta
- A economia de Dilma é essa aí VINICIUS TORRES FREIRE
- Absoluto e relativo MIRIAM LEITÃO
- Visão autoritária MERVAL PEREIRA
- DEPUTADOS NÃO LEGISLAM?
- A Europa vacila CELSO MING
- Exercício da razão Dora Kramer
- A presidente hesita João Augusto de Castro Neves
-
▼
junho
(310)
- Blog do Lampreia
- Caio Blinder
- Adriano Pires
- Democracia Politica e novo reformismo
- Blog do VILLA
- Augusto Nunes
- Reinaldo Azevedo
- Conteudo Livre
- Indice anterior a 4 dezembro de 2005
- Google News
- INDICE ATUALIZADO
- INDICE ATE4 DEZEMBRO 2005
- Blog Noblat
- e-agora
- CLIPPING DE NOTICIAS
- truthout
- BLOG JOSIAS DE SOUZA