Entrevista:O Estado inteligente

sexta-feira, junho 24, 2011

Segredo é para quatro paredes Fernando Gabeira

O ESTADO DE S. PAULO

Em duas formas diferentes e diferentes relações com o tempo, o sigilo
entrou na agenda política brasileira. Na forma de segredo de Estado,
ele aparece nas objeções de Sarney e Collor à divulgação de documentos
depois de um prazo de 50 anos. É perfeitamente razoável que se oponham
levantando questões de Estado. O surpreendente foi o recuo de Dilma
Rousseff, uma vez que o projeto aprovado na Câmara sempre teve o apoio
do governo. O outro sigilo classifico de mais indigesto: o dos gastos
com as obras da Copa do Mundo. Com esse nem Sarney concorda.

Quando a maioria esmagadora das pessoas entende esse sigilo como
sospechoso, torna-se inadequado dizer que foi mal interpretado. Como
estamos no universo político, e não das ciências exatas, o razoável é
afirmar que diante da interpretação majoritária o governo se explicou
mal. São nuances.

Falando diretamente: não passará. Sobretudo num momento em que acaba
de cair o chefe da Casa Civil e a Fifa e CBF são acusadas, na Suíça e
na Inglaterra, de corrupção. Uma questão de tempo e bom senso para
dizer: esqueçam, não está mais aqui quem propõe sigilo para os gastos
nessa empreitada, com esses atores.

Já o projeto que estabelece o acesso aos documentos públicos é muito
mais amplo do que eventuais vazamentos revelando que obtivemos terras
da Bolívia, escalpelamos os paraguaios na guerra ou compramos o seu
governo no projeto de Itaipu. A quebra desse sigilo é fundamental,
reconheço, para os historiadores e a afirmação da maturidade
democrática brasileira. O argumento que Dilma apresenta para
justificar seu recuo, objeção do Itamaraty, é surpreendente. Nossos
diplomatas não podem dizer, parodiando Drummond: os amigos não me
disseram que havia uma comissão. E havia. O presidente era do PT, José
Genoino; o relator, do PMDB, Mendes Ribeiro. Mais do que isso, o
Itamaraty não poderia ignorar que o governo marchava nessa direção e
que Dilma, já candidata, fez um discurso público a favor do projeto.

Quem faz pressão pública para que o governo volte atrás? Sarney e
Collor. Um presidente que todos nós criticamos, outro que todos nós
derrubamos. Mais fácil seria dizer a eles que a democracia brasileira
vive um outro tempo, que suas observações são ponderáveis, mas
seguiremos com nossos prazos para o sigilo. O problema é que o
curto-circuito introduzido por Sarney-Collor obscurece a importância
do projeto não só para a opinião pública, como também para o
indivíduo.

A partir dele, o Estado terá de montar uma estrutura para atender às
demandas de informação. Quando discutíamos o tema na Câmara,
aprendemos que os EUA gastam US$ 300 milhões anuais para satisfazer às
perguntas que chegam e honrar o compromisso de garantir acesso.

O primeiro obstáculo a ser vencido é do sigilo eterno. Mas,
infelizmente, depois de vencido, a luta estará apenas começando. É
mais fácil para o governo anunciar que aprovou a lei de acesso aos
documentos públicos e afirmar que, nesse ponto, o Brasil se equipara a
outras democracias.

Vai haver uma rápida celebração. Mas, e depois, quando as pessoas
quiserem, realmente, utilizar o seu direito de saber? Estaremos
preparados para isso?

Numa tentativa - desesperada, creio eu - de desqualificar o projeto,
Sarney afirmou que o Brasil não se poderia expor ao WikiLeaks sobre
sua História. Nada mais inadequado que essa comparação. O WikiLeaks
obtém informações contra a vontade dos governos, sem se preocupar com
a dimensão legal de sua obtenção. O projeto brasileiro prevê as formas
legais de acesso, determina os prazos para a abertura dos arquivos. É,
na verdade, um antídoto contra vazamentos, uma vez que oferece os
documentos. Nos casos em que isso não for possível, a pessoa
interessada ficará sabendo, claramente, quanto tempo falta para
conhecer os dados.

Muitos não conhecem o poder da informação. Ou nem mesmo calculam como
na sua vida, em determinado momento, pode ser essencial obter do
governo um certo documento. Houvesse essa compreensão, certamente
teríamos algumas marchas pelo acesso aos documentos oficiais.

A presidente Dilma tentou confortar a crítica ao seu recuo afirmando
que os documentos sobre a ditadura militar não podem gozar de sigilo.
Tudo bem, mas não devemos utilizar a ditadura como uma espécie de
biombo. O que está em jogo não é apenas o conjunto de documentos sobre
aquele período. É toda a vida do País, do fim até o começo.

Ditadura, Guerra do Paraguai, consolidação das fronteiras, tudo isso é
muito interessante e vai dar excelente debate entre historiadores e
acadêmicos. Mas a questão central é aqui e agora. São as demandas que
os jornais fazem na Justiça para terem acesso a documentos que o
governo esconde, são as dúvidas que um indivíduo, às vezes, tem para
definir sua trajetória.

A história dos documentos secretos ligados às fronteiras nacionais ou
mesmo às guerras do passado pode se transformar numa espécie de bode
na sala.

No mesmo momento em se discute o sigilo com retórica de estadistas, a
Câmara aprova o segredo nas contas da Copa do Mundo, o governo não diz
quanto gastará para pôr o projeto de acesso em funcionamento, nem
monta a estrutura necessária para que ele funcione no cotidiano.

Gravada também por João Gilberto, que faz 80 anos, uma canção popular
brasileira diz que segredo é pra quatro paredes e o peixe é pro fundo
da rede. Mas o segredo da canção é entre amantes que compartem a mesma
casa. Não há segredos eternos nas questões públicas.

Por acaso, a ministra Ideli Salvatti deixou a Pesca e, ao assumir Casa
Civil, comunicou o recuo de Dilma no caso do sigilo. Não sei se um dia
ouviram a canção, mas, seguramente, estão em conflito com ela. O
segredo para quatro paredes não é uma questão do governo. E o peixe no
fundo da rede, bem, essa é mensagem mais inequívoca, mas parece que a
ministra Ideli não a entendeu, a julgar pela sua passagem pelo
Ministério da Pesca.

Jornalista

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