O GLOBO - 25/06/11O debate que está sendo travado entre o Senado e o Executivo em torno das medidas provisórias tem aspectos mais funcionais, como a preocupação do presidente José Sarney de não receber mais MPs com prazo de votação expirado ou excessivamente reduzido, que não permitam uma análise pelos senadores.
Ou aspectos mais políticos, como a alteração que o senador Aécio Neves, como relator da proposta de emenda constitucional do próprio presidente do Senado, apresentou, na prática subordinando as medidas provisórias - que se transformaram em um instrumento do hiperpresidencialismo - à decisão do Congresso.
O fato é que as medidas provisórias se tornaram imprescindíveis para o Executivo, a ponto de o ex-presidente Lula ter dito que é impossível governar sem elas, e a presidente Dilma ter reagido à iniciativa do senador Aécio Neves com uma espontaneidade inusual: "Logo na minha vez querem tirar esse instrumento de governabilidade", teria comentado.
As medidas provisórias entram em vigor assim que editadas, e o governo quer que essa prerrogativa continue. O senador Aécio Neves propunha que elas só vigorassem depois de serem analisadas por uma comissão mista do Congresso, que teria um prazo mínimo para verificar se a medida se enquadra nas exigências legais, coisa que hoje não é levado em conta pelo Congresso, que aceita medidas provisórias que não têm nem urgência nem relevância, e também as que tratam de diversos assuntos desconexos ao mesmo tempo.
O mais provável é que o Congresso não imponha ao Executivo nenhuma restrição, e que o Senado apenas ganhe mais tempo para analisar as medidas provisórias, ficando cada Casa com um prazo fixo determinado para a análise do conteúdo das emendas, ao contrário de hoje, quando o prazo é conjunto e quase sempre gasto na Câmara, por onde entram as MPs.
O líder do governo Romero Jucá está negociando um acordo que estabeleça prazo de 70 dias para a Câmara analisar as MPs, outros 40 para o Senado e 10 para votar eventuais emendas.
As medidas provisórias são talvez a principal razão para que a taxa de aprovação das propostas do Executivo tenha, no sistema brasileiro, um índice semelhante à de regimes parlamentaristas.
Essa constatação está no trabalho "Instituições políticas e governabilidade - desempenho do governo e apoio legislativo na democracia brasileira", em que os cientistas políticos Argelina Figueiredo e Fernando Limongi apresentam estatísticas que mostram que a taxa de sucesso das propostas de todos os presidentes da República, desde a redemocratização, é de 85%, próxima da obtida em sistemas parlamentaristas, e muito maior do que a que se verificou entre 1945 e 1964.
Esse e outros estudos indicam que o Executivo tem capacidade de pautar o Congresso e fazer aprovar a sua agenda legislativa.
Um trabalho recente sobre a reforma do sistema eleitoral da Câmara dos Deputados, já analisado aqui na coluna, realizado em conjunto pelo cientista político Octavio Amorim Neto, da Escola Brasileira de Administração Pública e de Empresas da Fundação Getulio Vargas do Rio, o geógrafo Bruno Cortez, do IBGE, e Samuel Pessôa, economista do Instituto Brasileiro de Economia (IBRE), da FGV-Rio, se refere a esse trabalho de Argelina Figueiredo e Fernando Limongi, destacando um aspecto não muito analisado.
Como as principais características do atual sistema, como o voto proporcional e a lista aberta, existiam também no período democrático de 1946 a 1964, o que diferencia aqueles tempos de instabilidade e radicalização políticas com os da redemocratização, quando o Executivo tem capacidade de organizar sua coalizão congressual com mais sucesso e eficiência?
Segundo Figueiredo e Limongi, a diferença entre os dois regimes democráticos reside no fato de o atual ter mantido as extensas prerrogativas legislativas conferidas ao presidente pelos militares.
Assim, uma série de faculdades dos presidentes do período pós-autoritário não existia para aqueles que governaram antes de 1964: ter iniciativas exclusivas em projetos orçamentários e tributários; iniciar emendas constitucionais; editar medidas provisórias; editar leis sob requerimento de delegação do Congresso; solicitar urgência; e impor restrições a emendas parlamentares.
Figueiredo e Limongi mostram ainda que os líderes partidários da fase democrática atual também detêm uma série de poderes que os seus antecessores, antes do regime militar, não possuíam: determinar a agenda do plenário; representar a bancada; retirar projetos de lei das comissões por meio de requerimento de urgência; e indicar e substituir membros das comissões mistas, de CPIs e das comissões do orçamento.
Um dos autores do trabalho sobre a reforma eleitoral para a eleição da Câmara, o cientista político Octavio Amorim Neto, retoma um de seus pontos já desenvolvidos em outros trabalhos: é possível afirmar que, no atual período democrático, o excesso de fragmentação e personalismo resultantes das regras do jogo político é contrabalançado por poderes excepcionalmente fortes do Executivo e das lideranças partidárias, quando se compara com o período de 1946 a 1964.
Assim, alguns dos mais citados "defeitos" do sistema político nacional, como a ampla autoridade constitucional do presidente e a fragmentação do Congresso, são, na verdade, características que, até certo ponto, se neutralizam.
A governabilidade, do ponto de vista do Executivo, estará assegurada com a manutenção das regras das medidas provisórias, mas o Congresso terá perdido uma oportunidade de se afirmar como um dos poderes da República se não encontrar meios de pelo menos limitar os excessos que o Executivo vem cometendo no uso das medidas provisórias.
Entrevista:O Estado inteligente
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