Entrevista:O Estado inteligente

domingo, junho 19, 2011

Teorias & manias Humberto Werneck

O Estado de S.Paulo
1.Você é um pescoço forte ou um pescoço fraco?

Enquanto confere no espelho, saiba que essa questão andou ocupando os
miolos de alguns dos mais respeitáveis escritores brasileiros. Gente
como Manuel Bandeira. Vinicius de Moraes. O grande memorialista Pedro
Nava. O refinado ficcionista Aníbal Machado.

Quem se saiu com essa, conta Bandeira, foi Nava, que, sendo também
médico, conhecia de sobra a anatomia humana. Ou teria sido Aníbal,
como afirma Vinicius? Não importa. Um dos dois (ambos mineiros, o que
pode não ser simples coincidência), viajando de ônibus pelo Rio de
Janeiro, habituou-se a observar a nuca do cidadão aboletado à frente.
(Pensando bem, talvez o observador de pescoços não fosse tão mineiro
assim, pois um montanhês legítimo haveria de preferir o espetáculo da
praia). O fato é que, sacolejando entre a Cinelândia e a zona sul, lá
ia o fulano a catalogar: forte, fraco, fraco, forte... O que
interessava, nessa investigação, não era a eventual beleza ou feiura
do istmo de carne e osso que liga a cabeça ao tronco, e sim o que
podia ter ele de revelador acerca da psicologia de seu proprietário.

Bandeira adorou a sacada e cuidou de registrá-la: "Há umas pessoas de
pescoço delicado com os tendões visíveis e alguns ralos cabelos, ao
passo que em outras o pescoço é musculoso ou pelo menos enxuto, de
cabelo rijo e bem implantado". As primeiras, portadoras de uma
fraqueza também moral, titubeiam ante a mais trivial decisão a tomar.
Se alguém entra no ônibus e permanece de pé, embora haja um assento
vago, nem é preciso conferir a bitola: trata-se, seguramente, de um
"pescoço fraco". Será preciso, diz Bandeira, que um "pescoço forte"
lhe diga: tem um lugar ali. Mesmo apaixonado, corre o risco de morrer
avulso, tamanho é o pavor que tem de declarar-se à amada.

A teoria, nascida nos anos 30, dificilmente seria formulada nos dias
de hoje, e não apenas porque a elevação do espaldar das poltronas vai
toldando as nucas. Em cidades como o Rio e São Paulo, onde a violência
costuma viajar de ônibus, a prudência, em matéria de pescoço,
recomenda preocupar-se mais com a preservação do nosso e menos com a
contemplação do alheio. Mas me permita insistir: e o seu, é forte ou
fraco?

2. Aquele ali (pescoço forte ou pescoço fraco?)

tem horror a mesquinharias. Se arrepia todo à simples ideia de
aproveitar resto do que quer que seja - nenhum espetáculo humano é
mais desprezível, sentencia, do que o sujeito aplicando toda a força
dos polegares num beliscão patético para extrair o que ainda possa
jazer no exaurido tubo de pasta de dente.

Aos desavisados, suas implicâncias podem dar a impressão de que se
trata de um magnata. Quem lhe dera! O saldo bancário é de classe
média, tendendo a média-baixa - mas sua etiqueta mandar enjeitar
alguma coisa, qualquer coisa, ainda que seja o último naco de camarão,
num gesto que, além de desapego, a seu ver denota elegância e finura.
Em casa, num apertado fim de mês, ele até admite traçar um mexidinho,
desde que não haja estranhos à mesa e que a gororoba não se faça à
base de sobras de refeições pretéritas: exige que se cozinhe
expressamente cada componente dessa "mixórdia brasileira", como
costuma dizer, para só então misturar. No escritório, já apostrofou um
colega flagrado na operação de esquentar a ponta da caneta
esferográfica, a fim de amolecer a tinta e ordenhar uma última
gotícula.

Em alguns casos, é verdade, não lhe falta razão quando reage indignado
ao que considera sovinice. Aquela sua irmã, por exemplo, que à noite
anda em braille pela casa para poupar energia elétrica, que disfarça
na salada a folha já meio escurecida de alface e que foi vista lavando
o coador de papel para mais um café. Pior que todos, o cunhado que
reutiliza o fio dental. Numa roda de amigos, mais de uma vez, vendo
circular um baseado, ele invectivou o grupo, não por fumar maconha,
mas por "fazer boca de anão" - expressão com que designa o ato de
franzir os beiços, dando-lhes o aspecto de um circular código de
barras, no esforço de queimar até o fim a bituca da bituca.

Pescoço fraco é que não é.

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