Sempre se tem cuidado com generalizações, para não atingir os que não
se enquadram nelas. Às vezes o sujeito odeia indiscriminadamente toda
uma categoria, mas, ao falar nela e, principalmente, ao escrever, abre
lugar para as exceções, os "não-são-todos" e ressalvas hipócritas
sortidas. Outros recorrem a gracinhas, como na frase do antigamente
famoso escritor Pitigrilli, segundo a qual "as únicas mulheres sérias
são minha mãe e a mãe do leitor". No caso presente, decidi que as
generalizações feitas hoje excluem todos os leitores, a não ser,
evidentemente, os que desejem incluir-se - longe de mim contribuir
para aumentar nossa tão falada legião de excluídos.
Antigamente, era muito comum ler ensaios e artigos escritos por
brasileiros em que nós éramos tratados na terceira pessoa: o
brasileiro é assim ou assado, gosta disso e não gosta daquilo. Em
relação a maus hábitos então, a terceira pessoa era a única empregada.
O autor do artigo escrevia como se ele mesmo não fizesse parte do povo
cuja conduta lamentava. Até mesmo nas conversas de botequim, durante
as habituais análises da conjuntura nacional, o comum era (ainda é um
pouco, acho que o boteco é mais conservador que a academia) o
brasileiro ser descrito como uma espécie de ser à parte, um fenômeno
do qual éramos apenas espectadores ou vítimas. Eu não. Talvez, há
muito tempo, eu tenha escrito dessa forma, mas devo ter logo
compreendido sua falsidade e passei a me ver como parte da realidade
criticada. Individualmente, posso não fazer muitas coisas que outros
fazem, mas não serei arrogante ou pretensioso, vendo os brasileiros
como "eles". Não são "eles", somos nós.
Creio que, feita a exceção dos leitores e esclarecido que estou
falando em nós e não em inexistentes "eles", posso expor a opinião de
que fica cada vez mais difícil não reconhecer, vamos e venhamos, que
somos um povo desonesto. Não conheço as estatísticas de países
comparáveis ao nosso e, além disso, nossas estatísticas são muito
pouco dignas de confiança. Mas não estou preparando uma tese de
mestrado sobre o problema e não tenho obrigação metodológica nenhuma,
a não ser a de não falsear intencionalmente os fatos a que aludo e que
vem das informações e impressões a que praticamente todos nós estamos
expostos.
Claro, choverão explicações para a desonestidade que vemos,
principalmente nos tempos que atravessamos, em que a impressão que se
tem é de que ninguém é mais culpado ou responsável por nada. Há sempre
fatores exógenos que determinaram uma ação desonesta ou delituosa. E,
de fato, se é assim, não se pode fazer nada quanto à má conduta, a não
ser dedicar todo o tempo a combater suas "causas". Essas causas são
todas discutíveis e mais ainda o determinismo de quem as invoca, que
praticamente exclui a responsabilidade individual. E, causa ou não
causa, não se pode deixar de observar como, além de desonestos,
ficamos cínicos e apáticos. Contanto que algo não nos atinja
diretamente, pior para quem foi atingido.
Ninguém se espanta ou discute, quando se fala que determinado político
é ladrão. Já nos acostumamos, faz parte de nossa realidade, não tem
jeito. Alguns desses ladrões são até simpáticos e tratados de uma
forma que não vemos como cúmplice, mas como, talvez, brasileiramente
afetuosa. Votamos nele e perdoamos alegremente seus pecados, pois,
afinal, ele rouba, mas tem suas qualidades. E quem não rouba? Por que
todo mundo já se acostumou a que, depois de uma carreira política de
uns dez anos, todos estão mais gordinhos e com o patrimônio às vezes
consideravelmente ampliado? Como é que isso acontece rotineiramente
com prefeitos, vereadores, deputados, senadores, governadores,
ministros e quem mais ocupe cargo público?
Os políticos, já dissemos eu e outros, não são marcianos, não vieram
de outra galáxia. São como nós, têm a mesma história comum, vieram,
enfim, do mesmo lugar que os outros brasileiros. Por conseguinte,
somos nós. Assim como o policial safado que toma dinheiro para não
multar - safado ele que toma, safados nós, que damos. Assim como o
parlamentar que, ao empossar-se, cobre-se de privilégios nababescos,
sem comparação a país algum.
Em todos os órgãos públicos, ao que parece aos olhos já entorpecidos
dos que leem ou assistem às notícias, se desencavam, todo dia,
escândalos de corrupção, prevaricação, desvio de verbas, estelionato,
tráfico de influência, negligência criminosa e o que mais se possa
imaginar de trambique ou falcatrua. E em seguida assistimos à
ridícula, com perdão da má palavra, microprisão até de "suspeitos"
confessos ou flagrados. A esse ritual da microprisão (ou nanoprisão,
talvez, considerando a duração de algumas delas) segue-se o ritual de
soltura, até mesmo de "suspeitos" confessos ou flagrados. E que fim
levam esses inquéritos e processos ninguém sabe, até porque tanto
abundam que sufocam a memória e desafiam a enumeração.
Manda a experiência achar que não levam fim nenhum, fica tudo por isso
mesmo, porque faz parte do padrão com que nos domesticaram (taí, povo
domesticado, gostei, somos também um povo muito bem domesticado) saber
que poderoso nenhum vai em cana. E é claro que, por mais que negue
isso com lindas manifestações de intenção e garantias de sigilo (como
se aqui, de contas bancárias de caseiros a declarações de imposto de
renda, algo do interesse de quem pode ficasse mesmo sigiloso), essa
ideia de esconder os preços das obras da Copa tem toda a pinta de que
é mais uma armação para meter a mão em mais dinheiro, com mais
tranquilidade. Ou seja, é para roubar mesmo e não há o que fazer,
tanto assim que não fazemos. Acho que é uma questão cultural, nós
somos desse jeito mesmo, ladravazes por formação e tradição.