Entrevista:O Estado inteligente

domingo, junho 26, 2011

Esboços de uma obra capital José Arthur Giannotti

Chega às livrarias brasileiras a primeira tradução feita no País de
Grundrisse, volume com textos de Karl Marx escritos em 1857-58, os
quais avançam no que seria o ponto mais alto de seu pensamento

A Editora Boitempo está lançando uma das obras clássicas de Marx:
Grundrisse der Kritik der Politishen Ökonomie, mantendo a primeira
palavra do título alemão Grundrisse (Esboços). É assim que este livro
se tornou conhecido entre nós. Acompanha-o, na contracapa, um rápido
comentário do sociólogo e economista Francisco de Oliveira, velho
amigo. Reúne textos redigidos nos anos 1857-1858 e que permaneceram
inéditos até 1939 e 1941, quando foram publicados, em dois volumes,
pelo Instituto Marx-Engel-Lenin de Moscou. São textos preparatórios do
livro que sairia em 1859, Para a Crítica da Economia Política, e
avançam no que seria O Capital.

Não é fácil traduzir uma obra desse porte, em particular na medida que
deixa visível o emprego da lógica hegeliana na montagem dos
argumentos. Quando O Capital foi traduzido para o francês, Marx pede
ao tradutor que não preste muita atenção às argúcias da dialética,
pois os franceses não são muito afeitos a elas. Para quem se interessa
pelo método marxiano - no fundo ligado a uma ontologia do ser social,
como descobriu o velho Lukács - esses jogos aparentemente verbais
servem para mostrar, dentre outras coisas, como as relações
capitalistas de produção passam por um processo de reificação, muito
diferente do que acontece nos outros modos de produção. É, pois,
fundamental para Marx não confundir, por exemplo, a compra e venda da
força de trabalho com a compra e venda do escravo. Neste caso, o
indivíduo é comprado como se fosse uma mercadoria, todo ele passando a
ser propriedade do comprador. Em contrapartida, na relação
propriamente capitalista apenas é comprada a força do trabalhador por
um determinado período de tempo. Não se confunda essa transação com o
pagamento que se pode fazer a alguém que preste um serviço. O salário
do trabalhador regular é determinado pelas forças de mercado, tudo se
passando, então, como se ele fosse uma pequena parcela do quantum de
trabalho que um sistema dedica à produção dos bens de que necessita.

Marx aceita a teoria do valor da mercadoria formulada por Ricardo.
Este valor não se resume simplesmente no tempo concreto gasto para
produzir um objeto. O tempo é socialmente abstrato porque representa
uma parcela do tempo que todos os trabalhadores de uma sociedade
despendem para produzir tudo de que ela necessita, desde que todos
eles trabalhem num determinado nível social de produtividade.

Note-se que fazem parte desta medida ao menos dois parâmetros
abstratos - trabalho social necessário e produtividade média - que
somente podem se confirmar depois que o processo de trabalho terminou.
Pois só assim é que se poderá saber qual foi o trabalho necessário
para produzir na medida do consumo social e como todos os
trabalhadores tiveram acesso a instrumentos que se encaixam numa
produtividade socialmente determinada.

No fundo, essa definição somente ganhará sentido científico se as
equações de seu modelo incluírem uma constante que possa introduzir
essas medidas post festum. Mas, fora do modelo, o que representaria
efetivamente essa constante? Não depende do próprio movimento do real?

Marx, porém, não é apenas um grande cientista, mas igualmente o
crítico de uma teoria e de uma forma de sociedade. Pretende trazer
para o nível da crítica a crítica das armas que os movimentos sociais
mantinham contra os capitalistas; estes, incapazes de criar riqueza
social sem enormes bolsões de miséria. Ora, essa crítica se dirige
antes de tudo contra o tipo de objetividade que os economistas
emprestam aos conceitos científicos; eles os pensam como se fossem
a-históricos, sem data de validade e sem contradições internas. Um
conceito da economia política não pode ser reduzido a relações formais
e funcionai; deve incluir o modo pelo qual seu objeto vem a ser,
encontra sua forma e se desfaz. Não é o que já acontece com esse valor
trabalho, que é muito mais do que relacionamentos de valores de uso
com valores de troca? Estes passam a ser iguais entre si de tal modo
que terminam representando o valor transpassando todos os produtos. E
nesse equacionamento o que importa não é tanto como se trocam
mutuamente, mas como passam a exprimir um tempo de trabalho
característico de um modo especialíssimo de produzir socialmente.

Daí a crítica que Marx, anos depois, endereça a Ricardo: "A última
objeção decorre da exposição defeituosa de Ricardo que não investiga
de modo algum o valor segundo sua forma - a forma determinada que o
trabalho assume como substância do valor - mas apenas as magnitudes de
valores, as quantidades desse trabalho [QUE É]universalmente abstrato
e social graças a essa forma, que produz a diferença nas quantidades
de valor das mercadorias" (Theorien Über Den Mehrwert, 2, 163, Dietz
Verlag, 1959).

Além das magnitudes, os valores teriam uma substância, isto é um
trabalho social sustentando cada uma de suas expressões, aquela
totalidade integrada por todos os atos de trabalho decorridos num
período de tempo. Estes simplesmente não se somam. Como perdem suas
respectivas medidas individuais para formar um todo que passa a medir
o exercício de cada trabalho individual? É como se um galo e uma
galinha se reunissem para produzir um ovo e um filhote porque todos
esses atos estivessem sendo dirigidos pela forma, pela espécie
galinácea. Sem a teoria do código genético, essa espécie só pode ser o
conceito hegeliano que possui em si mesmo a capacidade de criar seus
próprios casos. Estamos assim em plena lógica idealista. Como
conciliar essa crítica com o materialismo marxiano?

Se a alienação já marca o valor trabalho, ela se aprofunda na
constituição do capital. O primeiro passo é a transformação do valor
da força de trabalho em capital variável. Se a primeira figura do
capital é o dinheiro que se investe para que retorne com mais valor,
se todos os outros insumos investidos na produção mantêm seu valor, já
que conservam o trabalho morto neles incluído, só o dinheiro investido
na compra da força de trabalho será variável, podendo aumentar, mas
também diminuir. No entanto, sendo dinheiro apropriado pelo
capitalista investidor, ele é capital e não mais "capital humano" de
propriedade dos trabalhadores.

Conforme Marx avança na análise do modo capitalista de produção, mais
se aprofunda a alienação das categorias. É fundamental observar que
esse processo vai além do fetichismo das mercadorias, da reificação
das relações que as determinam. Não encontramos nos Grundrisse a
reificação peculiar do capital. Somente no terceiro volume d'' O
Capital aparecem as três formas nas quais o capital se aliena. Tudo se
passa como se naturalmente o capital produzisse lucro; a terra, renda
fundiária e o trabalho, salário - quando na realidade todas essas
formas encontram seu fundamento numa apropriação subreptícia da
mais-valia, isto é, na diferença de valor entre o trabalho socialmente
produzido e salário pago.

O processo de reificação e de alienação é, pois, o nervo da crítica
marxista. Marx justifica o sistemático emprego da lógica hegeliana na
medida em que ele a inverte. Um dia, afirma ele, haveria de apresentar
essa inversão. Mas uma lógica que se pretende ser um círculo de
círculo não pode ser invertida. Pouco ajuda invocar autores como
Feuerbach, que partiam no movimento enriquecedor da percepção. Desde
que o conceito se apresenta com a capacidade de determinar seus casos,
não há como fugir da lógica hegeliana. Isto não é uma ilusão
necessária do sistema? Cabe então examinar o sentido dessa ilusão e
como ela se infiltra no coração dos procedimentos do capital.

Cabe, porém, desde já, ressaltar que o fetichismo da mercadoria não
possui a mesma estrutura do fetichismo do capital. Marx mostra que
eliminando o primeiro naturalmente o segundo seria anulado. No
entanto, como hoje, depois do insucesso do socialismo real, não
sabemos como produzir socialmente sem as amarguras do mercado,
precisamos atentar para as diferentes formas de alienação. Se a
mercadoria somente funciona se estiver apoiada numa relação
pré-jurídica de propriedade, já o capital integra a política no seu
desenvolvimento: o capital sempre luta para encontrar situações
privilegiadas de acesso aos mercados.

Para a ciência econômica de hoje, essa inversão da relação entre norma
e casos não tem cabimento, pois os fenômenos econômicos são pensados a
partir dos comportamentos do homo economicus, do homem racional que,
aceitando determinados fins, trata de mobilizar os meios para
atingi-los. Contudo, depois da enorme crise do capital financeiro, na
qual o mundo ainda está medido, é preciso voltar com olhos críticos
para as análises muito instigantes da alienação desse capital.

Não me parece possível entender essa crítica marxista sem examinar a
lógica que serviu à montagem dos textos críticos de Marx. Depois da
Terceira Internacional se divulgou a tolice de que haveria duas
lógicas, uma formal, que excluiria qualquer contradição, e a lógica
dialética, que a abrigaria. Aceita a contradição, seria possível
descrever o movimento do conceito até articular casos que o negassem.
Essa duplicidade da lógica, porém, separaria o intelecto em duas
partes irredutíveis. Não haveria coordenação possível entre elas. Não
seria o caso de voltar a refletir sobre o que faz com que relações
sociais apareçam como se fossem determinantes de seus casos? Para essa
tarefa, o estudo dos Grundrisse é imprescindível.

José Arthur Giannotti é professor emérito de filosofia da USP,
pesquisador do CEBRAP e autor, entre outros, de Lições de filosofia
primeira (Companhia das Letras)

FONTE: SABÁTICO/O ESTADO DE S. PAULO

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