Entrevista:O Estado inteligente

domingo, junho 19, 2011

A Realpolitik e a utopia Gaudêncio Torquato

O Estado de S.Paulo
Três historinhas, sendo a primeira muito conhecida.

Condenado à morte por corromper a juventude, Sócrates, o filósofo,
recusou a oferta para fugir de Atenas sob o argumento de que seu
compromisso com a polis não lhe permitia transgredir as regras. Os
gregos cultivavam o respeito à lei.

Lúcio Júnio Bruto, fundador da República Romana, libertou seu povo da
tirania de Tarquínio, derrubando a monarquia. Mais tarde, executou os
próprios filhos por conspirarem contra o novo regime. Pregava o poeta
Horácio: "Doce e digno é morrer pela Pátria".

Outro romano, rico e matreiro, conta Maquiavel no Livro III sobre os
discursos de Tito Lívio, deu comida aos pobres por ocasião de uma
epidemia de fome e, por esse ato, foi executado por seus concidadãos.
O argumento: pretendia tornar-se um tirano. Os romanos prezavam mais a
liberdade do que o bem-estar social.

Os relatos sugerem a seguinte pergunta: qual dos três personagens se
sairia melhor caso o enredo ocorresse dentro do cenário da política
contemporânea? O terceiro, sem dúvida. Não seria executado por
alimentar a plebe, mas glorificado, mesmo que por trás da distribuição
de alimentos escondesse a intenção de alongar um projeto de poder.
Essa é a hipótese mais provável em países, como o Brasil, de forte
tradição patrimonialista e com imensas parcelas marginalizadas e
carentes.

A moldura acima oferece uma leitura de dois mundos. O primeiro é
regrado por princípios e valores, dentre os quais se destacam o
compromisso com o bem comum e com a vida harmoniosa, a obediência às
leis, a defesa da moral e da ética, a grandeza da Pátria. Tem que ver
com a paradisíaca ilha da Utopia, que o inglês Thomas Morus descreveu:
uma terra de paz e tranquilidade onde os habitantes não têm
propriedade individual e absoluta e trocam de casa a cada dez anos,
ganhando por sorteio o espaço que lhes cabe. Esse Estado perfeito é o
espelho da cidade divina, em contraposição à cidade terrestre. Esta,
mais afinada com o universo esboçado por Maquiavel, se inspira no
princípio "os fins justificam os meios". O florentino prega a noção de
que o povo é dotado de razão, sendo capaz de decidir o seu destino.
Sonha com a liberdade. Para conquistá-lo o príncipe deve usar os meios
que se fizerem necessários. Transparece aqui a lógica maquiavélica:
ideologias e valores morais devem ceder lugar aos instrumentos que
podem garantir a hegemonia ou o equilíbrio da balança do poder. Ou,
para usar a expressão de Weber, a ética da ação deve prevalecer sobre
a ética da consciência.

Pois bem, o desenho pode ser projetado para entendermos a presente
quadra político-institucional vivida pelo País, na qual se tem
expandido a massa crítica sobre a voracidade dos atores políticos,
partidos e dirigentes. Como é sabido, na abertura dos ciclos
administrativos, a crise crônica entre os Poderes Executivo e
Legislativo alcança altos níveis de tensão. O fato é que os novos
governantes tendem a rebater pressões e demandas por cargos e espaços
no vasto território da administração federal, feitas pelos parceiros.
Tem sido assim desde os tempos de Sarney, em 1985. Com Lula viu-se a
mesma gangorra. Ora o governo ganhava mais fôlego no Parlamento, ora
faltava oxigênio. Até o momento em que o próprio presidente passou a
fazer articulação política.

No caso do atual governo, a sístole tem-se apresentado de maneira mais
intensa em razão da identidade técnica da presidente. Dilma Rousseff
toma precauções para não se tornar refém da esfera política. Neste
ponto se abre uma polêmica, por sinal, bastante azeitada por
intérpretes de nossa política, que batem de maneira insistente na
tecla da "voracidade dos partidos aliados". Denuncia-se, ainda, a
criação de dificuldades por parte dos atores políticos para obter
facilidades, e o fisiologismo, apresentado como traço indelével das
siglas.

Esse é o ponto nevrálgico. É possível governar sem o concurso do
agrupamento partidário na administração? Impossível. Sem o apoio dos
partidos da base o chamado presidencialismo de coalizão soçobrará na
missão. Qual é a medida do bom senso na distribuição das fatias do
bolo do poder? Primeira regra: avaliar o peso relativo dos entes
partidários. Segunda: selecionar perfis adequados e condizentes para
as estruturas governativas. Aristóteles, em suas reflexões sobre
política, dá uma pista: "Quando diversos tocadores de flauta possuem
mérito igual, não é aos mais nobres que as melhores flautas devem ser
dadas, pois eles não as farão soar melhor; ao mais hábil é que deve
ser dado o melhor instrumento". Trata-se de meritocracia. Terceira:
preservar e preencher as áreas econômicas com perfis técnicos. Quarta:
controlar, cobrar resultados.

Críticas são procedentes quando se enxerga a apropriação da res
publica pelo bolso privado. Ou em caso de ineficiência dos gestores.
Para tanto há sistemas de controle, a partir do Tribunal de Contas da
União e dos promotores públicos. Portanto, nem lá nem cá. As demandas
partidárias devem ser contempladas com critério. Partidos que ganham
devem participar da administração. Esse, porém, tem sido o calcanhar
de Aquiles da presidente Dilma, ou, se quiserem, o abacaxi a ser
descascado pela ministra Ideli Salvatti. A imagem com que se defronta
o governo é a de encruzilhada, onde se bifurcam duas estradas. Uma
leva os atores políticos à ilha de Thomas Morus. Onde rezarão pela
cartilha da ética, da moral, da lei, da harmonia. Aí se ergue o altar
da política como deveria ser. A outra os conduz ao espaço da política
como ela é. Mundo de Maquiavel. Pleno de demandas, pressões, pedidos,
obras, interesses. Essa é a terra dos nossos "ismos": mandonismo,
nepotismo, grupismo, familismo, caciquismo, patriarcalismo, todos
sementes do patrimonialismo.

Sugestão: uma confissão do escritor de O Príncipe com o santo que
escreveu A Utopia.

JORNALISTA, É PROFESSOR TITULAR DA USP, CONSULTOR POLÍTICO E DE
COMUNICAÇÃO TWITTER: @GAUDTORQUATO

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