"Zé, vou te dizer uma coisa: poucas vezes estive tão bem, tão feliz, como agora." Ouvi isso do Paulo Renato num momento do balanço de vida que fizemos na noite do domingo passado, no seu apartamento. O pretexto do encontro foi a reativação do Instituto Social-Democrata, que ele presidia. Mas esse tema exigiu pouco das três ou quatro horas em que lá estive.
Ele acabara de voltar de um hospital de Porto Alegre, onde fora acompanhar a mãe, que tinha sofrido uma cirurgia. O relato da viagem deu lugar a uma conversa descontraída, sem agenda, de amigos antigos e profundos, com um pouco sobre tudo — o estado das artes de cada um de nós, a situação dos filhos, episódios comuns do passado, pessoas que desapareceram prematuramente e até a saúde pessoal dele.
Ali estava o Paulo, fisicamente bem disposto, animado com o novo trabalho e, naquela altura da vida, sem amarguras ou ressentimentos, satisfeito com o que fizera pela educação no Brasil e em São Paulo, entusiasmado com a visita da sua filha mais jovem, que mora no México, com seus dois netos, mostrando-me até o quarto que tinha preparado para hospedá-los. Aliás, ele sempre foi um pai atento e carinhoso para seus três filhos.
Uma das virtudes do Paulo Renato sempre foi o espírito prático – estudar bem os assuntos, avaliar, fazer acontecer. Mostrou isso como aluno no curso de pós-graduação de economia da Universidade do Chile, funcionário qualificado da OIT na área de políticas de emprego, professor universitário, membro da equipe da Secretaria de Planejamento, secretário de Estado, Reitor da Unicamp, gerente de operações do Banco Interamericano de Desenvolvimento e coordenador do programa de governo do candidato Fernando Henrique Cardoso na campanha eleitoral de 1994. Atuou da mesma maneira no MEC, na Secretaria da Educação em São Paulo e como deputado federal na última legislatura.
Ele tinha enorme capacidade para aprender questões novas para organizar propostas ou decisões. Lembro-me de dois exemplos menores, mas muito ilustrativos. Professor da Unicamp num certo período, coordenou pesquisas para a Coalbra, empresa federal presidida pelo Sérgio Motta, ainda no governo Figueiredo, em plena crise do petróleo, destinada a implantar fábricas de extração do álcool da madeira no Brasil! Num projeto sobre Reforma Tributária, começo dos oitenta, organizado por mim no Cebrap, coube ao Paulo uma das partes mais difíceis: diretrizes para distribuir 20% do então ICM entre municípios de um Estado, fora dos critérios do valor adicionado por cada um deles. Ele não era versado em sistema tributário, muito menos no tema que lhe coube: pouco conhecido, difícil, importante, mas chato. Em pouco tempo, porém, conseguiu sintetizar o assunto e fazer uma proposta engenhosa.
Paulo Renato foi o segundo ministro da Educação mais longevo de nossa história – durantes os oito anos de mandato de Fernando Henrique Cardoso —, ficando atrás apenas de Gustavo Capanema, durante a ditadura do Estado Novo. Sua gestão fez enorme diferença para a educação brasileira. Ele conseguiu aprovar a nova Lei de Diretrizes e Bases da Educação e abriu o caminho para as grandes avaliações sobre a situação do nosso sistema de ensino, criando o ENEM e o SAEB, inicialmente tão hostilizados pelas corporações mais partidárias (e reacionárias) da área educacional.
Com sua equipe, Paulo Renato concebeu e implantou o Fundef — marco do reforço da educação básica no Brasil, e contra o qual votaram as bancadas do PT da Câmara e no Senado. O fundo levou mais recursos e descentralização para o ensino fundamental e associou-se a uma das fases de maior expansão do número de crianças na escola, que chegou no limiar dos 100% — ou seja, à universalização do ensino básico. Foram dele, também, o estabelecimento dos Parâmetros Curriculares Nacionais, o primeiro programa de disseminação massiva do Ensino Técnico no Brasil e a criação do programa Bolsa-Escola, que, junto com a Bolsa Alimentação e outros programas do período, deram lugar ao Bolsa Família. Note-se que o Bolsa- Escola partiu do zero e avalie-se, então, o tamanho da competência dos seus gestores iniciais, que o implantaram, com o ministro Paulo Renato à frente.
No seu segundo período como secretário da Educação em São Paulo — tinha sido secretário também do Franco Montoro —, entre 2009 e 2010, quando fui governador, Paulo Renato construiu os pilares das reformas mais profundas em nível estadual já feitas no Brasil nas últimas décadas – iniciadas, diga-se, antes de ele assumir a secretaria por pessoas de sua equipe no ministério, como a Maria Helena Castro. Entre muitas outras coisas, foi introduzido o mérito – avaliado individualmente e por meio de resultados — como fator relevante de promoção e remuneração. Foi consolidado o programa Ler e Escrever (incluindo a elaboração de material didático para alunos e professores) e criada a Escola do Professor, que ministra quatro meses de cursos posteriores à aprovação de candidatos nos concursos do magistério, a fim de aprimorar suas condições pedagógicas.
Na secretaria, Paulo mostrou mais uma vez quatro outros atributos que marcaram sua vida pública: saber juntar gente preparada para acompanhá-lo; não temer dar-lhes oportunidades de realização e prestígio; manter-se calmo em momentos difíceis e ter coragem de impulsionar mudanças complexas e fundamentais, correndo riscos e enfrentando interesses. Não se creia que era politicamente inábil. Ao contrário, sabia persuadir e negociar com adversários, até em razão de sua atitude de respeito aos outros, paciência infinita e personalidade cordial, sem falar do seu espírito prático. Oitenta por cento das tensões havidas na área educacional durante essa fase das reformas deveram-se a motivações puramente eleitorais, em face da sucessão presidencial e estadual.
No encontro de domingo à noite, evocando sua passagem pelo Institute for Advanced Study de Princeton, onde eu morava e trabalhava, durante todo o verão de 1977, Paulo lembrou da motivação original da viagem: operar os olhos de dois de seus três filhos, feridos pela explosão de um artefato deixado num lugar descampado pelo militares que promoveram o golpe de 1973 no Chile, em alguma de suas ações de controle de território ou pura repressão. Num passeio campestre de toda a família, em 1975, ocorreu a tragédia, por sorte sem consequências graves no longo prazo.
Eu sugeri que ele escrevesse sobre esse período (e outros) de sua vida e relatasse, do seu ângulo, a experiência que viveu no Chile do general Pinochet, incluindo suas ações de solidariedade aos perseguidos na época, como eu próprio. Ele respondeu que seria até prazeroso fazê-lo, que já tinha até pensado em anotar fatos e ideias. Quis a fatalidade que isso agora fique por conta dos seus amigos. O relato de uma vida que fez tanto bem ao nosso povo.ao nosso povo.