Vamos ao teste: trata-se de um país que, em poucos dias, registrou nos
anais de sua História o seguinte pacote de ilícitos: extorsão contra
empresas, fraudes em contratos públicos, falsidade ideológica, abuso
sexual de crianças e adolescentes, ocultação de bens, formação de
quadrilha, superfaturamento de licitações, enriquecimento ilícito e
tráfico de drogas. Uma pista: os indiciados não são pessoas comuns,
mas figuras que cumprem a missão de bem servir à comunidade; são
autoridades públicas que fizeram o juramento de cumprir a lei,
defender valores éticos e morais e dar bom exemplo. Adivinharam onde
essa turma se abriga? Não é a Somália, país africano considerado o
mais corrupto do mundo. O buraco da corrupção é aqui mesmo, nestas
plagas que a ONG Transparência Internacional joga na 69.ª posição
entre os países menos corruptos do planeta. Nota do pé do parágrafo: o
ranking da criminalidade envolve prefeitos, vice-prefeitos, vereadores
e outras autoridades de diversos Estados brasileiros.
Nunca se viu fila tão extensa de representantes do poder público
receber voz de prisão em um único mês, este em curso. Um rápido olhar
na galeria flagra, por exemplo, os prefeitos de Abre Campo (MG), de
Novas Russas (CE) e de Senador Pompeu (CE), o ex-prefeito de Mirassol
(SP), o vice-prefeito de Embu-Guaçu (SP), o prefeito e alguns
vereadores de Dom Aquino (MT), o prefeito de Taubaté (SP) e a esposa,
o vice-prefeito de Campinas (SP) e a primeira-dama. O desfile de
alcaides por corredores do xilindró desperta animação, pela aparente
inferência no campo da moral, eis que a máxima de Anacaris, um dos
sete sábios da Grécia, começa a ser reescrita por aqui: "As leis são
como as teias de aranha, os pequenos insetos prendem-se nelas e os
grandes rasgam-nas sem custo". Os nossos grandes agora enfrentam um
alto custo. De fato, a moralização de costumes na condução da coisa
pública ganha faróis acesos dos órgãos de fiscalização, entre os quais
o Ministério Público (MP), o Tribunal de Contas da União e os
Tribunais de Contas dos Estados. A questão suscita a dúvida: se o
sistema de controles é apurado, por que ocorrem tantas ilicitudes na
administração pública?
É oportuno lembrar que a administração abriga uma teia gigantesca de
programas e serviços que começam na base do edifício público,
constituída por 5.564 municípios, entra pelo segundo andar, onde estão
os 27 entes estaduais, chegando ao piso mais alto, dominado pela maior
das estruturas, a federal. E esta se espraia por todos os espaços,
imbricando-se com outras malhas, formando interesses múltiplos e
incorporando parcerias da esfera privada. Identifica-se, aqui, o que
Roger-Gérard Schwartzenberg cognomina de o novo triângulo do poder nas
democracias, que junta o poder político, a administração (os gestores
públicos) e os círculos de negócios. Essas três hierarquias, agindo de
forma circular, cruzando-se, recortando-se, interpenetrando-se, passam
a tomar decisões que se afastam das expectativas do eleitor. A cobiça
dos parceiros - gestores, empreendedores privados e núcleos políticos
das três instâncias federativas - dita nova ordem no campo da
administração.
Não é fácil separar o joio do trigo e perceber as tênues linhas que
distinguem o bem comum do bem privado. A percepção é nítida diante de
exageros como casos de superfaturamento, vícios de licitações,
apropriação escancarada da coisa pública e flagrantes de ilícitos, por
meio de gravações autorizadas pela Justiça. Pode-se aduzir, portanto,
que a lupa dos órgãos de controle ajusta mais o foco nessa planilha.
Há a considerar, ademais, que os descaminhos na estrada pública têm
sido alargados pela evolução das técnicas. A ladroagem, hoje, é
embalada por um celofane tecnológico de alta sofisticação, diferente
dos costumes da Primeira República, quando a eleição do Executivo
municipal assumiu relevo prático. Naquele tempo, o lema da prefeitada
era: "Aos amigos pão, aos inimigos pau". O Brasil da atualidade sobe
degraus na escada asséptica, apesar das camadas de sujeira que ainda
entopem canais da administração pública. O MP acendeu luzes sobre os
esconderijos e parece movido por entusiasmo cívico, haja vista a
disposição com que se aferra à missão de proteger o patrimônio público
e social.
A tarefa de impedir que a teia de aranha seja rasgada pelos grandes
exige mais transparência de todas as estruturas públicas. Programas,
ações, prazos e recursos devem ser amplamente divulgados. Seria útil
que as comunidades acompanhassem de perto o fluxo das obras
municipais, a partir de sua descrição em painéis afixados em praças
públicas. Entidades do terceiro setor, muitas representando visões e
demandas de grupos, poderão colaborar exigindo maior rigor. O
fechamento das comportas da ilicitude seria completado por decisões
mais ágeis da Justiça. Eis aí um dos impasses. Por ausência de punição
ou por saberem que seus processos se esfumarão na névoa do tempo,
indiciados continuarão a romper os limites do império normativo. Urge
iluminar a escuridão dos porões do poder.
Aos prefeitos do interiorzão, um conselho: façam mais que calçamento e
aterro, fontes de corrupção, como explicava, nos anos de chumbo,
Drayton Nejaim, que foi deputado pela Arena e prefeito de Caruaru
(PE), ao presidente de seu partido, Francelino Pereira: "Fui prefeito
da UDN, me acusaram de roubo e eu saí pobre. Foi um sofrimento me
eleger deputado e, depois, a minha mulher. Política se faz com muito
dinheiro. Vou ser prefeito e sair rico da prefeitura".
Francelino quis saber o truque. Resposta: "Roubando muito". Ante a
confissão escandalosa, o interlocutor reagiu, afirmando que o partido
jamais iria admitir o crime. Nejaim não deixou por menos: "Não vai
haver escândalo, presidente. Farei uma receita perfeita. Calçamento e
aterro. Ninguém conta nem fiscaliza calçamento e aterro".
Reelegeu-se. Para fazer o que prometeu.