Folha de S Paulo
Provar que algo não aconteceu porque não consta do processo no tribunal de exceção, como fez o coronel Ustra, é uma afronta à razão e à história
Confesso minha surpresa com o artigo do coronel Ustra ("O delírio de Persio Arida", "Tendências/Debates", 27/5). Ele não aparece em minhas memórias. Não que o coronel fosse desimportante -pelo contrário, era o chefe do DOI-Codi, em São Paulo, um dos mais notórios centros de tortura dos anos de chumbo. É que escrevi memórias para registrar sentimentos, não para acusar pessoas.
A tortura foi no Brasil uma política de Estado, e não um desmando deste ou daquele militar. O que teria levado o coronel a escrever seu artigo? Talvez tenha ficado incomodado com o relato da tortura.
O coronel conseguiu a proeza de escrever um livro de mais de 500 páginas sem mencionar os horrores daqueles anos. Talvez tenha se sentido diminuído por eu ter contado que fui removido para outra central de torturas no Rio de Janeiro. Talvez tenha ficado chateado com as esfihas que burlaram a segurança da Operação Bandeirantes.
Sejam quais forem os seus motivos, vamos aos fatos que vivi.
Reafirmo: encontrei o Bacuri, sim; Massafumi fez uma preleção aos presos sobre as maravilhas da Transamazônica; os colchões da prisão estavam manchados de sangue; ouvia gritos de dor e de sofrimento durante as noites. A primeira dependência que me fizeram visitar, logo que cheguei à Operação Bandeirantes, foi a sala de torturas, onde ficava a cadeira do dragão. O choque elétrico tem a vantagem de não deixar marcas.
É uma pena que tenha que ser minha palavra contra a do coronel.
Se o Brasil tivesse instaurado uma Comissão de Justiça e Verdade, um processo aberto de depoimentos para que pudéssemos aprender com nossa própria história, o coronel teria a oportunidade não de ler um artigo na revista "Piauí", mas de ouvir várias centenas de testemunhos do que se passou em sua prisão. Sua memória e o Brasil teriam muito a ganhar com isso.
O coronel argumenta como se tudo o que aconteceu constasse dos autos dos processos. Se não consta dos autos, é porque não aconteceu.
O coronel "prova" assim que não fui transferido de São Paulo para o Rio porque isso não consta do meu processo na Justiça Militar.
Logo, minha tortura no Rio teria que ser fantasiosa. O coronel "prova" que Bacuri não passou por São Paulo porque consta que ele foi preso no Rio. E assim por diante.
A argumentação, por um lado, é bisonha -se a ditadura era capaz de mover pessoas do solo da terra para o fundo do mar, como o fez com Rubens Paiva, por que não moveria presos entre São Paulo e Rio de Janeiro? Por outro, ignora que os tribunais militares, no Brasil da época, apenas ratificavam as decisões da cúpula dos órgãos de repressão. Todas as ditaduras gostam de conceder simulacro de legalidade ao julgamento de seus inimigos.
Provar que algo não aconteceu porque não consta do processo no tribunal de exceção é uma afronta à razão e à história. Eu assinei o que mandaram assinar. Quem ousaria fazer diferente diante da perspectiva de mais uma rodada na sala de torturas? Ao usar documentos oficiais manipulados para provar seus argumentos, é o senhor, coronel, quem delira.
A ideia de que só se pode provar o que consta da documentação legal é perigosa. Hitler não assinou nenhuma ordem para adotar a solução final. Isso permite provar que inexistiu uma política oficial de extermínio dos judeus?
Estivemos em lados opostos, coronel. Eu deixei de ser comunista ou socialista há muito tempo.
Mas, se tivesse que escolher entre ser um jovem idealista, mas equivocado, ou o chefe da Operação Bandeirantes, eu preferiria ter sido quem fui, mesmo que tivesse que ser preso de novo. Eu não suportaria a vergonha de ter comandado uma casa de torturas.
PERSIO ARIDA é economista com doutorado pelo MIT (Massachusetts Institute of Technology, EUA).
Confesso minha surpresa com o artigo do coronel Ustra ("O delírio de Persio Arida", "Tendências/Debates", 27/5). Ele não aparece em minhas memórias. Não que o coronel fosse desimportante -pelo contrário, era o chefe do DOI-Codi, em São Paulo, um dos mais notórios centros de tortura dos anos de chumbo. É que escrevi memórias para registrar sentimentos, não para acusar pessoas.
A tortura foi no Brasil uma política de Estado, e não um desmando deste ou daquele militar. O que teria levado o coronel a escrever seu artigo? Talvez tenha ficado incomodado com o relato da tortura.
O coronel conseguiu a proeza de escrever um livro de mais de 500 páginas sem mencionar os horrores daqueles anos. Talvez tenha se sentido diminuído por eu ter contado que fui removido para outra central de torturas no Rio de Janeiro. Talvez tenha ficado chateado com as esfihas que burlaram a segurança da Operação Bandeirantes.
Sejam quais forem os seus motivos, vamos aos fatos que vivi.
Reafirmo: encontrei o Bacuri, sim; Massafumi fez uma preleção aos presos sobre as maravilhas da Transamazônica; os colchões da prisão estavam manchados de sangue; ouvia gritos de dor e de sofrimento durante as noites. A primeira dependência que me fizeram visitar, logo que cheguei à Operação Bandeirantes, foi a sala de torturas, onde ficava a cadeira do dragão. O choque elétrico tem a vantagem de não deixar marcas.
É uma pena que tenha que ser minha palavra contra a do coronel.
Se o Brasil tivesse instaurado uma Comissão de Justiça e Verdade, um processo aberto de depoimentos para que pudéssemos aprender com nossa própria história, o coronel teria a oportunidade não de ler um artigo na revista "Piauí", mas de ouvir várias centenas de testemunhos do que se passou em sua prisão. Sua memória e o Brasil teriam muito a ganhar com isso.
O coronel argumenta como se tudo o que aconteceu constasse dos autos dos processos. Se não consta dos autos, é porque não aconteceu.
O coronel "prova" assim que não fui transferido de São Paulo para o Rio porque isso não consta do meu processo na Justiça Militar.
Logo, minha tortura no Rio teria que ser fantasiosa. O coronel "prova" que Bacuri não passou por São Paulo porque consta que ele foi preso no Rio. E assim por diante.
A argumentação, por um lado, é bisonha -se a ditadura era capaz de mover pessoas do solo da terra para o fundo do mar, como o fez com Rubens Paiva, por que não moveria presos entre São Paulo e Rio de Janeiro? Por outro, ignora que os tribunais militares, no Brasil da época, apenas ratificavam as decisões da cúpula dos órgãos de repressão. Todas as ditaduras gostam de conceder simulacro de legalidade ao julgamento de seus inimigos.
Provar que algo não aconteceu porque não consta do processo no tribunal de exceção é uma afronta à razão e à história. Eu assinei o que mandaram assinar. Quem ousaria fazer diferente diante da perspectiva de mais uma rodada na sala de torturas? Ao usar documentos oficiais manipulados para provar seus argumentos, é o senhor, coronel, quem delira.
A ideia de que só se pode provar o que consta da documentação legal é perigosa. Hitler não assinou nenhuma ordem para adotar a solução final. Isso permite provar que inexistiu uma política oficial de extermínio dos judeus?
Estivemos em lados opostos, coronel. Eu deixei de ser comunista ou socialista há muito tempo.
Mas, se tivesse que escolher entre ser um jovem idealista, mas equivocado, ou o chefe da Operação Bandeirantes, eu preferiria ter sido quem fui, mesmo que tivesse que ser preso de novo. Eu não suportaria a vergonha de ter comandado uma casa de torturas.
PERSIO ARIDA é economista com doutorado pelo MIT (Massachusetts Institute of Technology, EUA).