Entrevista:O Estado inteligente

sábado, outubro 04, 2008

Roberto Pompeu de Toledo

A vã corrida 
atrás da história

"Identificar no crash dos bancos americanos o fim de uma era é avançar sobre o futuro com os mesmos precários instrumentos dos operadores doidivanas de Wall Street"

Uma charge na revista New Yorker de algum tempo atrás mostrava um cidadão da Roma antiga que, ao datar um documento, faz um gesto de desconsolo e se lamenta: "Esqueci de novo! Pus a.C. em vez de d.C.". Explicar a graça de uma piada é a melhor forma de desmoralizá-la, mas, vamos lá, abramos uma exceção. O romano cometia o mesmo erro, hoje tão comum, de ao emitir um cheque, no começo do ano, repetirmos a data do ano que terminou. No seu caso errara de era – em vez de "depois de Cristo", escrevera "antes de Cristo" –, e é desse fato que a charge extrai seus efeitos. Como é que o diabo do romano podia saber que já estava na era do d.C., e não do a.C.? Aliás, como é que podia saber que na remota província da Judéia, por aqueles dias, nascera de uma obscura família um bebê destinado a se tornar a figura central de uma nova religião?

A charge se desdobra de um absurdo a outro. Mesmo que o romano tivesse consciência do nascimento do bebê, dificilmente adivinharia que a religião nele inspirada viria a tornar-se tão importante que dali a três séculos se tornaria a religião oficial do Império. E mesmo que tivesse consciência disso não poderia adivinhar que, passados mais alguns séculos, o domínio da nova religião seria tal que o próprio modo de contar o tempo seria dividido entre antes e depois do nascimento de seu personagem central. O romano da charge é um portento. É capaz de sacar contra o futuro com pontaria precisa e alcance de vários séculos.

Nos últimos dias, ao comentarem o crash do sistema financeiro americano, muitas foram as pessoas – e entre elas reputados especialistas em suas áreas – que anunciaram o fim de uma era. Seria o fim do liberalismo, do neoliberalismo, do capitalismo, de um certo capitalismo, da hegemonia americana, de um modo de vida, de um modo de encarar o mundo, talvez mesmo o fim do mundo – escolha-se o fim do que se quiser, mas que seria o fim muito grave e sério de alguma coisa, seria. Algumas pessoas anunciavam o fim de uma era por ideologia; elas não gostam do neoliberalismo, do capitalismo e da hegemonia americana, e prevêem seus fins por coincidir com seu desejo.

Outras – e estas são mais interessantes – o fazem pelo irresistível impulso de avançar o sinal da história. A sensação é muito boa. Equivale a nada menos do que subjugar o tempo, e tê-lo aos pés como a um gatinho manso. Vive-se a emocionante experiência de ver a história brotar do solo. É como se o turco que invadiu Constantinopla pudesse ter gritado aos companheiros naquele cruel ano de 1453: "Vamos logo, que estamos inaugurando a era moderna!". Ou como se o transeunte que passou pela Rua Saint-Antoine, em Paris, no dia 14 de julho de 1789, e viu a turbamulta atacar a Bastilha, pudesse ter comentado com a mulher, ao voltar para casa: "Sabe o que eu vi hoje, querida? O início da era contemporânea". Antecipar um marco histórico nos faz tão poderosos, no saque contra o futuro, quanto o romano da charge.

A isso se acrescenta o prazer de desafiar a monotonia do tempo. Todo dia é a mesma coisa: amanhece, entardece, anoitece. Vai-se ao trabalho, à noite vê-se televisão, dorme-se. Mas espera que aí vem bomba! Nada mais será como antes! Em sete anos, esta é a segunda vez que assistimos a uma chuva de profecias de uma nova era. A anterior foi no 11 de setembro de 2001. Nada também seria como antes. O que concretamente mudou foi que em Nova York não existem mais dois vistosos prédios. A guerra que se seguiu, contra o Iraque, foi uma prova de que tudo continuou tão igual que os Estados Unidos foram capazes de cometer o mesmo erro do Vietnã, envolvendo-se num conflito sem sentido e sem saída.

O problema é que a história é tão exasperadamente lenta em manifestar-se que só se percebem seus movimentos décadas ou séculos depois. Na vida real, é mais aceitável o transeunte da Rua Saint-Antoine ter comentado com a mulher que aquele dia 14 de julho não teve nada de mais, só um incidentezinho na Bastilha. Querer flagrar a história no próprio instante em que está dando o pinote é vão. Aliás, não existem pinotes. O que existem são convenções futuras em que se fincam os marcos das transições. Profetizar o fim de uma era é avançar sobre o futuro com os mesmos precários instrumentos dos operadores doidivanas de Wall Street.

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