No calor da disputa eleitoral, quando a palavra adversário pipoca fácil nos discursos, é bom começar falando de como o antagonista, o inimigo, o outro — para usar um termo genérico — está relacionado conosco.
Não é fácil imaginar um outro inteiramente alheio a nossa maneira de ser, como fazem prova os alienígenas que povoam o cinema, a “ficção científica” e as histórias em quadrinhos.
Por outro lado, não se pode pensar o outro como idêntico a nós.
Realizar isso seria promover um tremendo embaralhamento interno porque, afinal de contas, todos nós devemos ser aquilo que o outro não é. É o outro — o adversário, o estrangeiro e o inimigo — que baliza e ancora o nosso modo de ser sempre mutante e fugidio como bem percebeu, entre outros, Machado de Assis na sua excepcional obra literária.
Por causa disso, o outro surge também no cômico, como ocorre com os cunhados, as sogras (esses parentes por afinidade clássicos no caso brasileiro); ou na figura do Manuel e do Joaquim, os portugueses das anedotas.
Rimos das “piadas do português”, não somente pelo que “eles” fazem, mas, sobretudo, porque as asneiras que os atribuímos têm um sotaque que garante uma estranha e instantânea compreensão. Daí o nosso riso nervoso, revelador de um bom pedaço de nós mesmos.
Eu já me perguntei se um dos problemas da identidade brasileira, não estaria nessa ausência de um outro que pudesse ser identificado por coisas mais concretas (como o estilo de falar, crer, governar e fazer política) do que pelo sotaque e pela burrice. Como situar o Brasil dentro da teoria clássica do colonialismo, se o inimigo era um avô rei e um pai imperador que falavam a mesma língua e conosco comungavam das mesmas crenças e valores? Se o inimigo não era um outro, era preciso criá-lo dentro de nós. Em coronéis transformados em senhores feudais; numa “direita” e numa “esquerda” que englobavam tudo; em ortodoxias políticas donas da redenção nacional.
Nem sempre o inimigo é aquilo que parece. Inimigos manifestos podem esconder os verdadeiros adversários ocultos: as mazelas perenes da vida pública brasileira. Emancipamos os escravos, mas jamais tivemos como projeto a construção de uma sociedade igualitária. Sempre supomos que a resposta estava no Estado quando — de fato — a questão está no nosso comportamento e na sociedade.
Chegar às doenças pelos sintomas é uma arte que a modernidade de máquinas, receitas e burocracias tende a esquecer.
As “listas”, os “ciclos” e os “processos” que surgem tão claramente estão ligados a um universo escondido e “real” de gente de carne e osso, como revelam os holocaustos étnicos e financeiros.
Se o nosso inimigo colonial era confuso — Calabar foi ou não um traidor? —, o verdadeiro adversário político pode estar dentro e não fora de nós.
Houve uma época que a Igreja deu mais valor às indulgências — uma espécie de subprime da graça e da absolvição — do que à ação virtuosa real como base para a salvação no outro mundo. Hoje, repetimos o engano.
Os americanos misturaram a riqueza dos papéis — valores futuros, dinheiros virtuais escritos em fórmulas hipotéticas, baseados numa elasticidade de um sistema financeiro capaz de expansão ilimitada — com valores reais que só podem ter o trabalho como base. Na pré-reforma religiosa, os poderosos compravam indulgências (e menos tempo no purgatório); no pós-capitalismo, que promete riqueza para todos — não andamos falando aqui no Brasil de uma aposentadoria universal? —, todos ficariam ricos só para baterem de frente com o limite e a fronteira entre o imaginado e o possível.
No Brasil, sempre confundimos promessa (feita por um santo) com realidade (a ser construída por todos).
Em tempos de eleição, misturamos o inimigo próximo, a etiqueta do partido que lembra prefixo de avião, com o verdadeiro inimigo. Falamos mais do partido e do programa do que das capacidades do candidato, mesmo quando as convergências que vivemos embaralham os velhos e confortáveis radicalismos. A encruzilhada é curiosa. O inimigo aparece na velha e boa oposição entre “direita” e “esquerda” quando, de fato, ele é o gerenciamento público pela máquina buro-partidária, perpetuadora das novas e velhas nomenclaturas e coronelismos que aristocratizam ao ponto da patologia, a vida política, com suas comitivas, negociatas, mensalidades, residências em palácios, asseclas e puxa-sacos. Com isso, esquecemos que o desafio político mais importante do Brasil contemporâneo é a promoção de práticas sociais igualitárias como instrumentos de humanização de uma vida exclusivamente baseada no “Você sabe com está falando?”. A rala e superficial política partidária, com seus debates baseados em receitas incapazes de prenderem bandidos e de atacarem problemas sociais prementes, promove o esquecimento dos verdadeiros inimigos. A opção sem limites pelo governante supremo, pela suposta segurança do apoio do rei disfarça, como sempre, a importância do local e, mais que isso, a sua governança imaginativa. Pois é nesse aqui e agora onde vivemos e morremos com felicidade, segurança, saúde e educação; ou sem essas coisas e à mercê de bandidos, corruptos e traficantes que jaz a questão.
P.S.: E por falar nisso, meu voto vai para o Gabeira.
Entrevista:O Estado inteligente
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