Entrevista:O Estado inteligente

quinta-feira, outubro 02, 2008

Míriam Leitão - Risco USA



Panorama Econômico
O Globo
2/10/2008

A cada nova etapa de tramitação do pacote, a cada nova versão do texto, o buraco fiscal aumenta. Ontem, foi incluída na versão do Senado uma garantia de que o FDIC pode pegar empréstimos ilimitados com o Tesouro para cumprir sua obrigação de cobrir os depósitos. Mesmo assim, é para os títulos do Tesouro que correm os investidores em momentos de pânico. Isso é o mais difícil de explicar.

A lógica do mercado financeiro globalizado é uma das coisas mais esquisitas do mundo. Nos momentos mais agudos dessa crise, ativos caíram no mundo inteiro. Caíram espantosamente, por exemplo, para ficar num exemplo nosso, os preços das ações da Vale e da Petrobras. A Vale exporta para mercados menos atingidos pela crise, já que quase nada vende para os Estados Unidos; a Petrobras está num momento de elevação das suas reservas de petróleo. Do ponto de vista concreto, e em outro contexto, deveriam estar subindo. Mas caíram. E caíram também as bolsas do Brasil, da China, da Rússia, da Coréia, e por aí afora. Esses investidores em fuga foram para onde se sentem seguros. E onde se sentem seguros? Nos títulos do Tesouro americano!

Olha a maluquice: os Estados Unidos são o centro da crise, o país que mais foi e que mais será atingido. Lá é que os bancos quebram, que a recessão se instala, que os imóveis despencam com mais intensidade. É também nos EUA que o déficit aumenta de forma espantosa. Um orçamento já desequilibrado receberá uma conta de mais US$700 bilhões, à qual estão sendo penduradas outras contas, que vão ampliando o rombo. Essa idéia do Senado de aumentar a garantia do FDIC, por exemplo, pode virar uma bomba fiscal em caso de aprofundamento da crise bancária.

Hoje, o fundo garantidor dos depósitos dos correntistas dos bancos tem US$ 45 bilhões, mas com eles garante depósitos no valor total de US$4,5 trilhões. Se a solução é criar essa verdadeira conta de movimento entre o FDIC e o Tesouro, o risco fiscal aumenta consideravelmente. A conta de movimento até 1986 no Brasil permitia que o Banco do Brasil sacasse no Banco Central quanto ele quisesse. A proposta do Senado é que o FDIC possa ter direito de pegar empréstimos ilimitados no Tesouro.

Um Tesouro com tantos riscos fiscais não pode ser o refúgio seguro em tempos de incerteza, mas tem sido escolhido para isso por investidores que chegam a aceitar juros negativos, ou seja, pagam para que esse endividado e encrencado Tesouro fique com o dinheiro deles por um tempo. E como o capital amedrontado vai para lá, o dólar, moeda do país mais encrencado no momento, é a que sobe. E se o cenário se complicar, subirá mais ainda.

A votação do projeto na Câmara ainda está cercada de incertezas. Primeiro, porque eles derrotaram o primeiro projeto; segundo, porque há interpretações de que um projeto que aumenta despesas não deveria ter começado pelo Senado; terceiro, porque as condições que levaram a Câmara a derrotar o primeiro pacote ainda estão lá.

A única diferença é que o susto foi tão grande, após a derrota da primeira versão, que alguns deputados estavam ontem dando sinais de mudança de posição. Eleitores, que antes pressionavam para não votar a favor do projeto, passaram a protestar com os deputados pelas perdas das aplicações em bolsa na terça-feira. Deputados, que não acreditavam no cenário catastrofista na eventualidade da derrota do projeto, passaram a acreditar. Então, há mais chance de aprovação na Câmara, ainda que não haja certeza de que será uma aprovação pacífica, sem protestos e sem novas alterações no projeto redigido no Senado. Ontem, durante todo o dia, o projeto foi mudando, mesmo tendo sigo negociado desde a véspera.

No melhor cenário, que é o da aprovação do projeto nas duas casas e sua execução imediata, ainda assim há estragos que não podem mais ser corrigidos. A economia americana está em recessão e com um déficit fiscal crescente, uma mistura que é perigosa. A recessão reduz arrecadação, o que aumentará ainda mais o déficit; o volume dos recursos necessários para resgatar o mercado pode ser ainda maior.

Ontem, a indústria automobilística anunciou números péssimos. Ford, Toyota, Honda anunciaram quedas de 32%, 35% e 24% nas vendas em setembro, respectivamente. A GM teve uma queda de apenas 16% por causa de um programa de incentivo à compra dos carros pelos empregados. Outros setores têm reportado quedas fortes de vendas, mesmo com algumas boas notícias, como a queda da inflação. Menos vendas, menos arrecadação num contexto de explosão de gastos no plano de socorro aos bancos. Como os Estados Unidos são os emissores da moeda de referência internacional, as incertezas produzem aumento da procura por títulos do Tesouro e fortalecimento da moeda.

Há interpretações encantando o governo no sentido de que o Brasil se beneficiaria da crise. O Brasil não tem nada a ganhar com esta crise. Tudo o que o país pode fazer, se o governo tiver bom senso, é adotar medidas que reduzam o impacto da crise no Brasil. Mas o sentido de urgência só aparece quando os mercados despencam após algum agravamento da crise.

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