Entrevista:O Estado inteligente

sábado, outubro 18, 2008

Mailson da Nóbrega Sistema financeiro: por que salvar; como não regular


"Mesmo que a nova regulação elimine as falhas que
contribuíram para a atual situação, o que é desejável,
dentro de alguns anos haverá uma nova crise. Isso
porque os reguladores não conseguem acompanhar
as inovações e a criatividade do mercado nem
detectar todos os seus riscos"

Três afirmações podem ser feitas em meio à atual crise. Primeira, governos responsáveis não permitem o colapso do sistema financeiro, como se viu na recente ação coordenada dos países ricos para capitalizar seus bancos. Segunda, as hipotecas subprime não serão a causa da próxima crise financeira. Terceira, a regulação será revista e melhorada, mas não parece exeqüível criar uma "autoridade monetária internacional".

A crise mostrou a dificuldade de entender o sistema financeiro. Não é de hoje. Há tempos os banqueiros são vistos com suspeita e antipatia. Na Idade Média, os pensadores escolásticos e a Igreja Católica condenavam os juros. Nas obras de Shakespeare e Émile Zola, os banqueiros ocupam um plano bem inferior ao das prostitutas.

Os bancos não emprestam o seu dinheiro, mas o dos outros. Captam os recursos dos poupadores e os repassam aos que deles precisam. Ganham a diferença entre essas duas operações (o spread) e comissões por outros serviços. São intermediários financeiros. Ao contrário do senso comum, os bancos preferem que o Banco Central possa manter os juros baixos, pois isso reduz o risco de inadimplência. Melhor para eles é um ambiente institucional que diminua os riscos. Isso aumenta a pontualidade e faz cair o spread.

Oito séculos depois que o atual sistema financeiro começou a tomar forma nas cidades-estado italianas, a atividade ainda é vista como parasitária. As operações e os lucros estariam desconectados da economia real. Na crise, essa percepção equivocada se acentuou. Políticos aqui e lá fora conseguiram juntar ignorância e demagogia.

Surpreendeu o grau de desinformação nos Estados Unidos. Os americanos exigiram punição severa para Wall Street. O governo deveria deixar os bancos quebrar. Apenas 30% eram favoráveis à aprovação do pacote de 700 bilhões de dólares, cujo objetivo era evitar o colapso do sistema.

A revolta tinha seus motivos. Muitos perderam as residências hipotecadas. Outros não se conformavam com os polpudos salários e bônus nos bancos que contribuíram para a crise. Na rejeição inicial do pacote, metade dos democratas e republicanos da Califórnia votou contra, com um olho nas urnas. Não era para menos. O preço dos imóveis naquele estado caiu 40% em um ano.

Mesmo diante da impopularidade do pacote, os dois senadores que disputam a Presidência da República compareceram para votar a favor e assim convencer os seus pares da necessidade de aprovação. Nenhum deles gostaria de administrar os escombros da implosão da economia real. Ambos sabem que não há capitalismo nem prosperidade sem sistema financeiro.

O sistema capitalista contemporâneo começou a surgir na Europa Ocidental no século XVII na esteira de dois grandes acontecimentos: (1) os avanços institucionais que aboliram o arbítrio dos reis, asseguraram direitos de propriedade e lançaram as bases das finanças modernas; (2) a derrubada de certos dogmas da Igreja Católica, o que permitiu o desenvolvimento da ciência e deu status moral à atividade de emprestar dinheiro.

Até o advento dessa revolução, a economia européia precisara de quinze séculos para quadruplicar. Em 1820, o capitalismo havia gerado o mesmo desempenho em apenas 320 anos. Daí até o fim do século XX, 180 anos depois, o PIB europeu multiplicou-se por 47. Nesses 500 anos, a economia americana se expandiu 634 vezes. Nos tempos atuais, a economia chinesa tem dobrado a cada seis ou sete anos.

Uma das principais contribuições para esses resultados e para os correspondentes ganhos de bem-estar foi a do sistema financeiro. Dele dependeram a Revolução Industrial iniciada no século XVIII e o novo impulso à economia no fim do século XIX, derivado das inovações que fizeram nascer o crédito ao consumo e ampliaram as fontes de financiamento do investimento e do progresso tecnológico.

Estudos recentes mostram que os países detentores de bons sistemas financeiros tendem a crescer mais rapidamente. O processo se intensifica quando se dispõe de adequados mercados de capitais e de grandes bancos privados. Criam-se incentivos à elevação da taxa de poupança e os recursos são mais bem alocados. A produtividade aumenta, acelerando o ritmo do crescimento.

Além do crédito, os bancos provêem o sistema de pagamentos, pelo qual se asseguram o uso de cartões de crédito, as transferências bancárias, os saques em dinheiro e a miríade de atividades relativas a pagar salários, adquirir matérias-primas, quitar impostos, fazer compras, viajar, cuidar da saúde e por aí afora.

Na Idade Média, os bancos quebravam quando os reis não pagavam os empréstimos para financiar guerras. A atividade econômica sofria pouco. Hoje, uma quebra generalizada de bancos pode vir de uma crise de confiança que os torne insolventes. A ausência de crédito e o colapso do sistema de pagamentos levariam a economia à depressão, com catastróficos efeitos econômicos, sociais e políticos.

Para conter esse risco, os governos usam todos os instrumentos, inclusive a estatização dos bancos ou a injeção de recursos públicos para capitalizá-los, como agora. Ao contrário do que comemora a esquerda, não se está diante de uma guinada ideológica, mas da necessidade de enfrentar uma realidade inescapável. As ações dos bancos reverterão ao setor privado tão logo se domine a crise.

Tem-se atribuído grande parte da crise à desregulação dos mercados. Ocorre que as hipotecas subprime – o seu epicentro – se expandiram depois que o Congresso americano criou regras para induzir as semi-estatais Fannie Mae e Freddie Mac a atuar em favor da população de menor renda. O mercado de subprime explodiu a partir de 2004, quando as duas empresas passaram a comprar montanhas dessas operações.

No outro extremo, faltou regulação para o mercado de derivativos. A falha teria decorrido da resistência de Alan Greenspan, então presidente do Federal Reserve. Para ele, a regulação prejudicaria o uso de um bom instrumento para distribuir os riscos do sistema. A auto-regulação resolveria. Assim, os derivativos saltaram de US$ 75 trilhões em 1997 para US$ 600 trilhões em 2007 (de 2,5 para onze vezes o PIB mundial).

É certo que a regulação será revista, incluindo a modernização do confuso aparato regulatório americano e a criação de câmaras de compensação para os derivativos. Uma boa regulação aumentará a transparência, manterá a capacidade de inovação dos bancos e preservará sua contribuição ao aumento da produtividade e ao desenvolvimento. Não se pode regular pensando apenas em controles. Isso tornaria o sistema menos arriscado, mas a economia cresceria menos.

Felizmente, haverá tempo para refletir sobre o assunto. Dificilmente haverá açodamento na feitura da nova regulação. Exageros poderão ser evitados. As autoridades americanas deverão exercer influência decisiva na definição das novas regras. Diferentemente do que se tem dito nestes dias, os Estados Unidos ainda serão hegemônicos por muitas décadas.

O governo brasileiro defende a criação de uma "autoridade monetária internacional". Por aí, burocratas baseados em um determinado país ditariam regras para bancos do mundo inteiro, do Iraque às nações ricas. É uma idéia sem futuro. A União Européia discute o estabelecimento de uma Comissão Bancária regional, que dificilmente teria o status supranacional do Banco Central Europeu. Os bancos centrais dos países-membros seriam mantidos com a tarefa operacional de supervisionar os bancos locais.

Mesmo que a nova regulação elimine as falhas que contribuíram para a atual situação, o que é desejável, dentro de alguns anos haverá uma nova crise. Isso porque os reguladores não conseguem acompanhar as inovações e a criatividade do mercado nem detectar todos os seus riscos. Explicação: os bancos têm maior capacidade de recrutar talentos e de melhor remunerá-los do que os governos.

Como aconteceu em outras oportunidades, o sistema financeiro se fortalecerá. As crises costumam gerar mudanças institucionais que melhoram o seu funcionamento. Esta não é, pois, a crise terminal do capitalismo, que Marx previu (e errou) há mais de um século, nem o ressurgimento do intervencionismo estatal de outros tempos. Nos países em que a re-regulação for bem feita, os bancos aumentarão sua contribuição para a geração de riqueza e bem-estar.

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