VIDA E MORTE DAS BOLHAS
Gilberto Tadday |
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Quando o economista José Alexandre Scheinkman começa a falar, a platéia faz silêncio para não perder uma palavra. Ele é um dos economistas mais respeitados do mundo. Ben Bernanke, atual presidente do Federal Reserve, fez questão de tê-lo por perto. Há nove anos, Bernanke convenceu Scheinkman a trocar a Universidade de Chicago pela de Princeton. Ele aceitou, depois de se certificar de que poderia morar em Nova York. "É a melhor cidade do mundo", diz ele, que é carioca, fã de arte contemporânea e estudioso das bolhas. Em entrevista a André Petry, correspondente de VEJA em Nova York, ele afirmou: "Toda bolha sempre nasce com uma boa história".
O senhor diria que algum governo, economista ou operador de Wall Street não sabia da existência de uma bolha imobiliária nos Estados Unidos? Não. Todo mundo sabia.
O senhor diria que algum governo, economista ou operador de Wall Street não sabia que, mais cedo ou mais tarde, bolhas estouram? Todo mundo sabe.
Então, por que agora se diz que a crise foi surpresa? O que não se esperava é que, de repente, todos os mercados imobiliários nos Estados Unidos, e até mesmo no resto do mundo, despencassem mais ou menos em sincronia.
Por que isso aconteceu? Ninguém sabe exatamente. Nos últimos anos, no meu trabalho acadêmico, tenho me dedicado a estudar a teoria das bolhas econômicas, e uma coisa que me preocupa há muito tempo é que as pessoas acham que sabem mais do que elas de fato sabem. É um resultado da aplicação desses modelos complexos de avaliação de risco, que todos usam. Os bancos de investimento, os bancos comerciais e até mesmo os responsáveis por regular o mercado utilizam esses modelos matemáticos. Acreditam neles.
Os modelos de risco estavam errados? O problema é que se criou no mercado financeiro uma atmosfera semelhante àquela que havia no mercado de arte em Nova York nos anos 50 e 60. Em seu livro A Palavra Pintada, Tom Wolfe conta que quem dissesse que a arte abstrata era ruim de imediato era considerado retrógrado, incapaz de compreender a beleza. Para parecer um entendido, você tinha de gostar de Jackson Pollock (pintor americano, 1912- 1956). Os modelos de avaliação de risco criaram uma mística semelhante no mercado financeiro. Se você dissesse não acreditar neles, ou desconfiar deles, as pessoas logo concluiriam que você não entendia nada do mercado. Isso fez nascer um excesso de confiança nos modelos de risco.
O problema, então, não foi a falta de regulamentação no mercado financeiro, que acabou permitindo que as instituições assumissem riscos enormes? Faltou regulamentação também. As agências de classificação subavaliaram riscos importantes, e os bancos de investimento e comerciais, e mesmo outras empresas, como a AIG, uma seguradora que atua no mercado financeiro, assumiram excesso de risco.
Por que os mercados estavam tão desregulados? Por ideologia. O presidente Bush e o próprio Alan Greenspan (que presidiu o Federal Reserve, o banco central americano, de 1987 a 2006) tinham uma atitude ideológica contra a regulamentação. Em 2004, a SEC(Securities and Exchange Commission, equivalente à CVM, Comissão de Valores Mobiliários) aceitou que os bancos de investimento adotassem alavancagens muito maiores. A partir do mesmo ano, o Federal Reserve também permitiu que os bancos comerciais excluíssem certos produtos de seus balanços. À atitude ideológica contra a regulamentação, o governo Bush aliou certa incompetência. A equipe econômica de Bush era fraca, com John Snow como secretário do Tesouro. Não concordo com tudo o que o atual secretário, Henry Paulson, está fazendo, mas ele é bem melhor que o antecessor.
O senhor concorda com o pacote de 700 bilhões de dólares para Wall Street? Não morro de amores por ele. Acho que o governo poderia ter forçado os bancos a se financiar mais no mercado, só dando dinheiro a quem não conseguisse. O Goldman Sachs conseguiu. Mas o governo, em vez de fazer isso, saiu propondo ajuda logo na largada. Dinheiro do mercado é caro. Dinheiro do governo é mais barato.
Se a crise tem origem nos Estados Unidos, por que o dólar continua forte? O dólar até cai de vez em quando, mas a questão é que a crise não está restrita aos Estados Unidos. Os bancos de investimento americanos foram um pouco mais rápidos que os de outros países em mostrar suas perdas. Já apareceram problemas em países europeus. Em alguns, a bolha imobiliária é pior do que a americana. É o caso da Espanha, da Irlanda. A Inglaterra já começou a ter problema. A Espanha tem vantagens. Seu sistema bancário é muito forte e seu governo tem uma situação fiscal invejável. Agora, note: quando tem notícia ruim, o dólar sobe em relação ao euro, à libra esterlina, mas não em relação ao iene. Existem razões técnicas para isso, mas também há uma certa idéia de que os bancos japoneses, entre os países ricos, podem ser um porto seguro na crise.
AP | |||
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Como o dólar não se enfraquece, deve-se entender que os EUA também são um porto seguro? A economia americana é uma potência. Com toda essa confusão, com o sistema financeiro derretendo, muitos consideram que as companhias americanas, sobretudo em setores específicos, como alta tecnologia, biotecnologia, ainda são grandes investimentos. Não há dúvida de que o sistema bancário americano está em crise, mas não é o que acontece com as empresas tecnológicas.
O sistema financeiro americano, quando se recuperar da crise, ficará melhor do que era?Os bancos vão se desalavancar, e isso reduzirá a lucratividade. O setor vai murchar e terá mais regulamentação, o que desestimulará certas operações. Agora, examinando por outro ângulo, o setor bancário ficará mais concentrado. O J.P. Morgan comprou o Bear Stearns há alguns meses e, agora, ficou com o Washington Mutual. Virou o segundo maior banco dos Estados Unidos. O Bank of America, o primeiro, adquiriu a Merrill Lynch. O setor bancário está ficando mais concentrado. Quanto mais concentrado for um setor, mais eficiente será seu lobby.
O lobby é ruim? A falta de regulamentação também resulta da força do lobby. Se os bancos fossem menos poderosos, para dar outro exemplo, a ajuda de 700 bilhões de dólares seria uma proposta mais dura.
A fartura de capitais em Wall Street ajudou a vitaminar a economia mundial e funcionou como mola propulsora da inovação. A crise agora significa que a economia global ficará lenta e menos inovadora? Não dá para prever. De repente, acontece uma descoberta inovadora e tudo muda. Mas há uma antiga discussão entre dois economistas famosos. Joseph Schumpeter, grande economista da inovação, achava que é preciso um setor financeiro desenvolvido para impulsionar a inovação. Em sua tese, o setor financeiro é uma espécie de motor da inovação. Joan Robinson, aluna dileta de John Maynard Keynes, sustentava que economias sofisticadas têm alto nível de inovação e também um setor financeiro desenvolvido, sem que isso represente uma relação de causalidade. É como se fosse uma coincidência. A pesquisa econômica feita nos últimos vinte anos dá mais razão a Schumpeter. Mas, repito, qualquer coisa pode acontecer. É imprevisível.
Nos anos 90, houve a bolha da internet. Agora, a bolha imobiliária. Como nasce uma bolha? Sempre nasce com uma boa história. A bolha tecnológica nasceu com uma boa história, de criar novas tecnologias, novos serviços, a internet. Mas aí o pessoal exagerou, achando que tudo seria vendido pela rede. A bolha de agora também começou com uma boa história: o aumento da demanda de casa, uma demanda que a economia podia sustentar. E tinha outra boa história, que era esse modelo de crédito menos arriscado, que vinha embutido nos modelos complexos de risco. Esse modelo de risco era novo, era matemática nova, que vinha sendo desenvolvida nos últimos anos.
As bolhas são sempre ruins? Claro que ninguém quer uma bolha, mas talvez elas tenham o papel de permitir que certas coisas aconteçam. Na bolha tecnológica dos anos 90, muito se perdeu, mas apareceram algumas coisas positivas. Quem não usa o Google atualmente? Da bolha imobiliária, é difícil ver hoje sua herança. Ficamos, é certo, com um entendimento mais completo sobre como os recursos são alocados e sobre o risco de confiar excessivamente na qualidade de certas inovações. Mas me parece que esse aprendizado foi obtido a um preço muito alto.
Onde a crise vai parar? Na área militar, diz-se que os generais estão sempre lutando a guerra que passou. Na economia, podemos dizer que estamos sempre lidando com a crise que passou. Ou seja, estamos trabalhando com os ensinamentos deixados pela experiência da Grande Depressão nos anos 30 e da década perdida do Japão nos anos 90.
E o Brasil? Estamos muito melhor hoje do que em 1994, ano do real. Tivemos a abertura da economia, o começo das reformas microeconômicas, sobretudo no segundo governo Fernando Henrique e continuadas e aprofundadas pelo governo Lula. Uma parte do setor privado brasileiro funciona extremamente bem, tem empresas muito eficientes. O Brasil, portanto, está muito melhor. Agora, nós moramos no mundo. É uma ilusão pensar que as coisas vão continuar boas no Brasil. Olhando para o passado, toda vez que o mundo piora, o Brasil, na média, piora. Quando o mundo melhora, o Brasil melhora. Somos responsáveis pela maior parte do nosso destino, mas a força da economia mundial sempre esteve lá. Então, acho que teremos períodos um pouco mais duros.
O que podemos entender por períodos mais duros? É recessão, desemprego, lucro e salários em queda? No caso do Brasil, acredito que a repercussão será mais nos números do crescimento. Acho que o país não vai se desenvolver como poderia. O Brasil se beneficiou muito do preço das commodities, da demanda mundial, do baixo custo do dinheiro, de uma porção de coisas. Agora, o país crescerá menos. A Europa será mais afetada do que se pensava. A própria China provavelmente sentirá os efeitos também. A Índia já está sentindo. O Brasil ainda não teve impacto no crescimento, mas as empresas já estão tendo problemas. O preço das commodities caiu bastante. Temos, no entanto, a sorte de ter commodities da economia agrícola. Mesmo que a economia mundial se desacelere, os chineses que começaram a comer vão continuar comendo. Isso é bom para o Brasil.
O que o Brasil deveria fazer para amenizar a crise? Eu gostaria muito que o atual governo olhasse para os problemas que existem no Brasil e aproveitasse esse período para acelerar as soluções. O país ainda não tem a situação fiscal que deveria ter. Houve um aumento muito grande de gastos nos últimos anos que deveria ser revertido ou, pelo menos, contido. As pessoas gostam de fazer as coisas no período fácil, mas ninguém faz nada quando vai tudo bem. Então, esse período mais duro que está pela frente pode ser uma oportunidade. Cabe ao Brasil aproveitar.