Entrevista:O Estado inteligente

domingo, outubro 12, 2008

Daniel Piza

Cérebro, floresta, cosmos


Agora que a era Bush parece estar chegando ao fim, com suas guerras e gastanças, tomara que outros hábitos do período também entrem na berlinda, como a reação do conservadorismo religioso à ciência - reação expressa na resistência às pesquisas com células-tronco e na ascensão de teorias como a do "design inteligente", parte da velha dificuldade puritana de aceitar as idéias de Darwin. O que esses conservadores não conseguiram foi obscurecer uma tendência editorial que só fez se acentuar desde os anos 70, a dos cientistas-escritores. Alguns dos melhores estilistas em atividade, repito, são da área científica e, embora muitos não-cientistas ainda não os tenham descoberto, têm feito enorme esforço em se aproximar da filosofia e das artes.

Não entendo que esses livros de ciência para público mais amplo sejam ignorados ou menosprezados por nossa imprensa e nossos intelectuais. Tome como exemplo Do Que É Feito o Pensamento, de Steven Pinker, que comentei quando lançado em inglês, The Stuff of Thought. Como pode uma pessoa que gosta de filosofia, digamos, não se interessar pelas pesquisas sobre o cérebro permitidas nos últimos anos por tecnologias de escaneamento que antes não existiam? Seguramente Aristóteles, Hume ou Freud se interessariam. Pinker, afinal, vai a uma questão fundamental: a riqueza de conceitos embutida na linguagem verbal humana, constituída não apenas de lógica, mas também das metáforas com seus padrões emocionais e morais.

No Brasil é comum ouvir que a linguagem não-verbal é superior, mas o que Pinker mostra é que a verbal envolve diferentes áreas cerebrais além do córtex. É um código orgânico com o qual lidamos com uma realidade sempre mais sutil e modulada do que ele, mas sem o qual não poderíamos desenvolver a consciência, a capacidade de encontrar padrões em meio ao caos. Não se trata nem de estrutura inata nem de atributo social, e sim de uma combinação complexa, multifocal, dessas duas forças. "Embora a língua revele as paredes de nossa caverna, também mostra como sair dela, pelo menos até parte do caminho." As capacidades de abstração e associação são dependentes uma da outra - e permitem que se diga, por exemplo, como é bom ver que Pinker já não reduz a variedade moral a determinações fisiológicas.

Antidogmática por vocação, embora tantos cientistas confundam seus limites, a ciência mostra, acima de tudo, que a humildade não é aceitar o senso comum, mas contestar sua tendência a rótulos apressados e consoladores. Lendo um livro tão bem escrito quanto O Canto do Dodô, de David Quammen, vemos com clareza como as idéias de Darwin, Wallace - que ele tolamente tenta colocar como pioneiro da Evolução, embora nunca tenha escrito nada semelhante à Origem das Espécies - e de outros naturalistas do século 19 representaram não apenas uma revolução científica, mas também mental. Não há pesquisa, por mais empírica, que não esteja informada por dúvidas conceituais.

O livro de Quammen mostra como a biogeografia vem se dedicando ao estudo das ilhas para entender como espécies se extinguem e podem ser preservadas. Uma ilha tem menor variedade de espécies do que o continente próximo, mas tem maior número de exemplares de cada espécie, formando verdadeiros bolsões de beleza exótica e equilíbrio delicado. O isolamento leva a especiações raras, mas também a extinções velozes. Essa diferença de grau, portanto, tem implicações profundas, em que "as fronteiras conceituais vão ficando nebulosas". Isso serve para discutir, por exemplo, o tamanho que uma reserva natural deve ter. Jared Diamond, observando que espécies diferentes correm riscos de extinção diferentes, argumenta que reservas amplas são mais eficazes para proteger as espécies menos competitivas.

O debate, porém, continua; o maior valor dessas pesquisas e teorias é mostrar como a natureza é mais intrincada do que supõem as ferramentas vigentes. Sobre isso também se lê em Panorama Visto do Centro do Universo, de Joel R. Primack e Nancy Ellen Abrams, outro livro recém-lançado pela Companhia das Letras. O casal de autores dá na Califórnia um curso sobre Cosmologia e Cultura, ciente de que essa história é também a da sucessão de "metáforas conceituais" sobre o universo. Mas estraga o texto ao exagerar no tom de auto-ajuda e em expressões como "Pirâmide da Densidade" e "Uróboro Cósmico", que não funcionam nem como metáforas. Didatismo por didatismo, é melhor ir à exposição sobre Einstein em cartaz no Parque do Ibirapuera. (Bem que o governador José Serra poderia batalhar por um Museu da Ciência na cidade, como batalhou pelo belo Museu do Futebol.) É a importância do pensamento conceitual que explica que ele tenha renovado tanto a Física, como um filósofo a refazer perguntas sobre o tempo.

Em 1995, por sinal, a editora Faber and Faber convidou o crítico literário John Carey para editar The Faber Book of Science, antologia que vai de Leonardo da Vinci a Isaac Asimov. Agora, em 2008, foi a vez de Richard Dawkins organizar um volume para a Oxford, The Oxford Book of Science Writing, que de certa forma complementa o de Carey. Dos 79 autores, há apenas 15 em comum, como Einstein e os conhecidos Stephen Jay Gould, Oliver Sacks, Richard Feynman e Carl Sagan, para citar quatro que me animaram a juventude. Os demais textos e trechos são de nomes como Matt Ridley, Daniel Dennett, Edward O. Wilson e os citados Pinker e Diamond - afora descobertas como Peter Atkins ("A riqueza da percepção é a riqueza do colapso controlado") e Loren Eiseley.

Numa passagem de The Growth of Biological Thought, o grande biólogo Ernst Mayr critica o essencialismo que nasceu de Platão e derivou especialmente no idealismo de seu país, a Alemanha, e observa como Darwin foi um dos primeiros a rejeitar esse modo de pensar que dá mais valor ao tipo do que ao indivíduo, às abstrações do que às variações. Diferenças existem, não são imperfeições do ideal. Como nota outro biólogo, Lewis Wolpert, a ciência implica mudanças de conceito porque muitos fenômenos da natureza são "contra-intuitivos e inesperados"; o que parece familiar muitas vezes não tem explicações familiares. Mas, quando descobrimos que é bem menos previsível do que imaginamos, a natureza fica mais bela, não menos, ainda que mostre que o mundo não foi criado em alguns dias com a finalidade de dar origem a uma espécie melhor que as outras. Se não sabemos o "o quê", ao menos percebemos o "como". Muito estrago é evitado quando o homem troca o medo pela curiosidade.

RODAPÉ

Fiquei devendo um comentário final sobre Indignation, o novo livro de Philip Roth. É extraordinário. O reentendimento entre um filho universitário e seu pai açougueiro é transtornado pela Guerra da Coréia, nos anos 50, mas a maneira como Roth entrelaça evento particular e histórico nada tem de convencional. O tom, como em Machado, é de um andamento trágico pontuado por lances cômicos. Marcus Messner é envolvido numa trama de sexualidade e humilhação, cita passagens inteiras de Por Que Não Sou Cristão, de Bertrand Russell, fica revoltado, mas não consegue escapar da rede de preconceitos e hipocrisias. A maioria das pessoas nem sabe que pertence a um tempo, o que não as faz vítimas mais inocentes. Roth é americano, antiamericano e universal. Se os velhinhos do Nobel preferem o chatonildo Le Clézio, azar deles.

POR QUE NÃO ME UFANO


Eis que aparece um monte de engenheiro-de-obra-feita para dizer que Alckmin errou em sair candidato, que Marta bateu no teto da rejeição e que a abstenção mostra a apatia eleitoral paulistana... Mas agora que tudo está claro resta dizer que, se em duas semanas Marta reverter a vantagem de 17 pontos de Kassab nas pesquisas, o marketing político terá um "case" único a estudar.

Não que isso demova os petistas de sua interpretação sobre as qualidades da ex-prefeita. Eles acham que a maior votação em algumas regiões da periferia mostra que ela governou para os mais pobres e Kassab para os mais ricos. Apenas a segunda parte é verdadeira, já que em Parelheiros ninguém pensa em dar dinheiro público para construir boulevards com fiação subterrânea e calçada contínua... Marta foi mais votada nos currais eleitorais do petismo, lugares como a Tattolândia; perdeu feio em bairros nada ricos das zonas leste e norte; não agradou à maioria dos que ganham em torno de R$ 1.000, o que está longe de ser a classe média que tem carros e vai a restaurantes. Embora sua campanha anunciasse que "internet não é só para os ricos", ela também governou para eles, fazendo túneis e plantando palmeiras. A cidade, no meio, perdeu.

No Brasil o PT cresceu e o PMDB cresceu mais ainda, mas de modo quantitativo, não qualitativo. Lula mais uma vez viu que popularidade é uma coisa, transferência de voto é outra. Personalista, fez o máximo para se descolar de seu partido nestes seis anos de mandato. Nos próximos dois, com o crescimento do PIB a 3% nas estimativas, vai ter menos cola ainda.

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