O inferno são os outros
O Brasil não é uma ilha imune à epidemia mundial
de aversão ao risco. A crise atinge a todos. Os que
se prepararam mais sofrem menos
Otavio Cabral e Cíntia Borsato
Montagem sobre fotos de Tasso Marcelo/AE, Charles Dharapak/AP, Richarddrew/AP e Paulo Whitaker/Reuters |
A FICHA CAIU |
Depois de um esforço inicial desastroso, os Estados Unidos começaram a consertar a engrenagem de crédito de sua economia e, em conseqüência, a da economia mundial. Na sexta-feira passada, a Câmara dos Deputados aprovou o pacote de 700 bilhões de dólares destinado, principalmente, a absorver, e depois revender no mercado, papéis podres que entopem os canais normais de empréstimos para empresas e consumidores. O plano inclui também uma série de incentivos fiscais no valor de 150 bilhões de dólares. Foi um grande salto para a Casa Branca, que, ao falhar na votação inicial, na segunda-feira, disseminou pânico, fez as bolsas desabar e colocou o país mais perto do precipício da recessão, mas apenas um pequeno passo para os mercados mundiais, cujos desafios estão longe de ser resolvidos somente com o desfecho do processo legislativo americano – as bolsas caíram mesmo com a aprovação do projeto pela Câmara e sua ratificação, horas depois, pelo presidente George W. Bush.
Com a aprovação do pacote de ajuda, Tio Sam salvou o mundo do colapso e será possível, primeiro, medir o tamanho do estrago e, em seguida, empreender a caminhada de volta na reconstrução dos mecanismos americanos e globais de produção de riqueza. Isso vai depender primordialmente de ter sido mantido mais ou menos intacto o ímpeto de crescimento da economia chinesa e dos demais países emergentes – o que vai garantir preços compensadores para as matérias-primas básicas, as commodities, que ainda são o sangue e a carne das economia do Hemisfério Sul. Vai depender também da coragem do consumidor americano de voltar às compras nas lojas e nas bolsas de valores. Acessoriamente, será preciso que os mercados financeiros e a economia real da Europa recuperem pelo menos parte de seu vigor pré-crise.
Paulo Whitaker/Reuters |
AÇÃO PREVENTIVA 1 |
Nesse processo, alguns países sofrerão mais. Outros menos. Mas nenhum escapará ileso aos efeitos desse cataclismo. Com sua intuição descomunal, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva percebeu que é preciso reconhecer que a nave verde-amarela vai pelo menos balançar com as ondas de choque da tormenta externa. "A crise é muito séria e tão profunda que não sabemos o seu tamanho. Talvez seja uma das maiores crises que o mundo já viu", afirmou o presidente na terça-feira passada, com um semblante mais circunspecto e grave do que o habitual, como a demonstrar que aquilo que acabara de dizer, e não o que vinha dizendo até então, era para ser ouvido com atenção. E prosseguiu: "A diferença é que, desta vez, os Estados Unidos estão na crise e nós estamos sólidos e precavidos. O Brasil fez as lições de casa e eles não fizeram". Tomara que o presidente esteja correto, e o país consiga atravessar com danos moderados o abalo nas finanças americanas, que já é considerado o mais profundo em oito décadas. A economia interna tem resistido, de fato, com robustez. Em grande parte devido aos escudos protetores que lhe permitem hoje navegar com mais segurança e capacidade em momentos de tormenta externa, como agora.
O problema é que o vírus das crises, assim como o da gripe, sofre mutações. E, embora o país tenha feito um esforço admirável para aprender com experiências traumáticas, é temerário imaginar que o conhecimento adquirido nas crises passadas será suficiente para curar o que Barry Eichengreen, professor de economia da Universidade da Califórnia, em Berkeley, apelidou de "um novo bicho, a pior crise da era recente da securitização em massa". Os reflexos no Brasil já são sentidos. Primeiro, na queda acentuada do preço das ações e na alta do dólar, cuja cotação voltou a superar 2 reais pela primeira vez desde agosto de 2007. Mas uma nova onda de contágio – e mais perigosa, se agravada – é a contração drástica do crédito externo. A torneira fechada dos bancos americanos e europeus já reduziu a liquidez no sistema bancário do país. Os empréstimos para as empresas e para as pessoas já ficaram mais caros em relação ao começo do ano, e os prazos diminuíram. Há um ano, companhias brasileiras de médio porte conseguiam financiar-se pelo prazo de doze meses a taxas médias anuais de juros de 15%. Hoje, os prazos foram reduzidos para dois meses, e as taxas dobraram. Bancos também começam a apertar o crédito ao consumidor. Há um ano, o prazo médio para financiar um carro zero-quilômetro era de 84 meses. Hoje, são 72 meses e, se a crise não se dissipar logo, pode haver um novo aperto. As vendas de automóveis, que cresceram 30% em 2007, já dão sinais de desaquecimento para 2008. As estimativas variam de 10% a 20%. Também já perde força o apetite do investidor externo na Bovespa, um dos mais importantes combustíveis que ajudaram a acelerar o ritmo de crescimento do país nos últimos anos. No ano passado, 80% das ofertas públicas de ações (IPO, na sigla em inglês) foram absorvidas por estrangeiros. Neste ano, com a deterioração da crise e a redução de emissões de ações, esse patamar caiu para 50%.
Beto Barata/AE |
AÇÃO PREVENTIVA 2 |
O governo, com certo atraso, deu-se conta do perigo apresentado pelos fatos acima. E já elaborou um contra-ataque – na verdade, uma versão local e diminuta da monumental ação conjunta dos bancos centrais mundiais para impedir o congelamento do crédito (veja matéria). Até aqui, a linha de frente da reação brasileira ficou a cargo do presidente do Banco Central (BC), Henrique Meirelles. Nas duas últimas semanas, a autoridade monetária adotou uma série de medidas destinadas a aumentar a liquidez no sistema financeiro. Em linhas gerais, o BC reduziu os depósitos compulsórios que precisam ser recolhidos pelos bancos, elevando a oferta de crédito na economia. A maior preocupação envolve as instituições de pequeno porte. Com uma base menor de clientes, elas possuem fontes mais limitadas de captação de recursos. Até o ano passado, viviam da fartura do crédito externo barato. Agora, sentem de maneira mais aguda os efeitos da tormenta financeira. Outra ação do BC foi vender dólares no mercado futuro. Essa medida foi necessária porque o setor privado nacional ainda tem um débito externo líquido – ao contrário do governo, que eliminou a dívida externa e dispõe de reservas superiores a 200 bilhões de dólares. Isso significa que, em momentos de incerteza acentuada, como o atual, os bancos e empresas que dispõem de excesso de moeda estrangeira em caixa evitam vendê-la no mercado. Assim, faltam dólares para aqueles que têm de honrar seus compromissos comerciais, e o BC tem de oferecer os recursos. Não se trata de queimar reservas, como nas crises passadas. O Banco Central vende dólares com o compromisso de recomprá-los em trinta dias, com efeito nulo sobre as reservas. O governo também decidiu elevar as linhas de financiamento à exportação – modalidade conhecida como adiantamento de contrato de câmbio (ACC). Metade dos recursos destinados a essas linhas vinha de bancos estrangeiros, entre eles duas instituições que lutam para sobreviver – o americano Wachovia, comprado na semana passada pelo Wells Fargo, e o europeu Fortis. O crédito de origem exclusivamente doméstica não foi suficiente para substituí-lo.
Até meados de setembro, o presidente Lula e o ministro da Fazenda, Guido Mantega, compartilhavam da mesma opinião: a crise da economia americana era localizada, passageira e, no máximo, atingiria o mercado financeiro, punindo os especuladores. Na semana passada, com a crise já em estado de septicemia, o governo percebeu que a previsível contaminação em série cruzou rapidamente o hemisfério e mostrou que a propalada imunidade brasileira não era tão absoluta como se tentava fazer crer. A imensa popularidade do presidente Lula está indissociavelmente ligada ao sucesso da economia. Pesquisa do Ibope divulgada na semana passada mostrou que a avaliação positiva do governo atingiu seu maior índice desde 2003 (69% da população considera o governo bom ou ótimo). É a segunda maior marca na série histórica da pesquisa, iniciada em 1985. Só fica abaixo da do governo de José Sarney, que, em 1986, durante o Plano Cruzado, obteve 72% de aprovação. Nos dois casos, a chave do sucesso foi o otimismo da população com relação ao ambiente econômico, medido pelo bem-estar proporcionado pelo aumento do consumo. Paira sobre os petistas a sombra do naufrágio do Cruzado, que devorou em pouco tempo a imensa popularidade de Sarney.
O governo tem demonstrado estar de posse da informação e dos meios para arrefecer os efeitos mais desastrosos da crise. O mundo econômico e financeiro atual é de tal forma interconectado que seria insano imaginar que o Brasil pudesse ser uma ilha imune à epidemia mundial de aversão ao risco. Os países viáveis fazem parte da ordem capitalista mundial que produz prosperidade crescente para todos mas, de tempos em tempos, esvai-se em crises também globais. É tola utopia querer participar apenas da prosperidade. Mas é sinal de sabedoria se preparar para sofrer o menos possível com as inevitáveis e sazonais crises do sistema.