Uma "era da suspeição" semelhante à imaginada por Nathalie Sarraute surgiu agora entre os aturdidos poupadores, pensionistas, acionistas e o público em geral a respeito do sistema capitalista, e esta é a razão principal pela qual os esforços desesperados dos governos ocidentais com seus planos de salvamento e de resgate dos bancos e de instituições financeiras meio quebrados pela crise fracassam ou funcionam pela metade, de modo passageiro, e a crise, em vez de retroceder, se agrava e parece prestes a provocar uma recessão mundial de efeitos apocalípticos.
A primeira pergunta que todo mundo faz e à qual ninguém responde é: como é possível que tenhamos chegado a esses extremos sem que ninguém se desse conta? Como se explica que banqueiros, financistas, ministros da economia, chefes e técnicos dos grandes organismos encarregados de vigiar a marcha da economia não acendessem o sinal vermelho quando ainda estávamos em condições de corrigir, de dar marcha à ré e atenuar essa queda generalizada do sistema financeiro mundial?
Uma resposta possível é que, a partir de um dado momento, a economia dos países ocidentais perdeu os vínculos com a realidade e começou a viver de ficção, em uma construção ilusória que, durante um bom tempo, permitiu a quem embarcou na aventura desfrutar de altíssimos dividendos e embolsar fortunas sem perceber que, desse modo, iam cavando debaixo dos próprios pés um fosso que tragaria todos nós.
Essa é a conclusão de todo leigo, que, como eu, nessas últimas semanas, se tenha dedicado a ler na imprensa as delirantes informações sobre a crise, começando pela bolha imobiliária que, iniciada nos Estados Unidos, estendeu-se logo a outros países ocidentais. Como as taxas de juros eram mantidas muito baixas, houve um grande incentivo para a aquisição de habitações, e bancos e financeiras concederam créditos e hipotecas que puseram apartamentos e casas ao alcance de qualquer um, tivesse ou não condições de honrar os compromissos. Por que aquelas empresas agiram deste modo irresponsável? Porque dessa maneira podiam apresentar balancetes com fantásticos rendimentos, que permitiam repartir benefícios e conceder vultosos prêmios de produtividade aos seus executivos e diretores.
Essas hipotecas eram garantidas por companhias de seguros que emitiam títulos sobre elas, ou seja, papéis, que rendiam juros aos seus investidores. Um dos mistérios que não foram resolvidos e, provavelmente, jamais serão são as somas alcançadas por essas transações de duvidosa consistência nos principais bancos e, conforme se viu agora, superavam todos os limites das leis, das normas que regulam o funcionamento das instituições financeiras e até do senso comum.
Como era de esperar, choveram críticas contra os executivos que, estimulados pela ganância, propiciaram a farsa aceitando as hipotecas podres, sabendo que jamais seriam pagas, porque isso lhes permitia receber polpudos prêmios de produtividade em função de benefícios que só existiam nos livros. Entretanto, sem que isso isente os gananciosos executivos, acaso não havia investidores que denunciassem a farsa e acabassem com ela, sabendo que tudo isso só acabaria em uma quebra da instituição?
A única resposta é que a ficção que as pessoas viviam manteve boa parte dos que faziam funcionar o sistema na pura obnubilação, ou seja, na crença ingênua de que a mentira continuaria fazendo com que bancos, imobiliárias, financeiras, seguradoras e credores operassem de maneira indefinida ou até que um milagre viesse salvá-los da ruína final.
Não houve milagre, porque o que os governos estão fazendo com seus planos de salvamento não é ressuscitar os mortos, e sim prolongar sua agonia o mais possível, na esperança de que, no meio tempo, haja uma recuperação progressiva do sistema. Isso ocorrerá, mas a longo prazo. Enquanto isso, as vítimas e os prejuízos serão enormes, principalmente para os países com menos defesas e para as pessoas com reservas escassas, para fazer frente aos anos de vacas magras que temos pela frente.
Evidentemente, o sistema capitalista não desaparecerá, porque, embora doa aos nostálgicos das economias estatizadas, com seu inevitável corolário - a ditadura totalitária - não existe nenhuma alternativa para substituí-lo. Mas a única maneira de que essa "era da suspeição" amaine e se restabeleça a confiança sem a qual o sistema da livre iniciativa e do mercado jamais podem ter sucesso, é uma reforma profunda de suas instituições e funcionamento.
A transparência, que brilhou por sua ausência, deve ser uma exigência em todos os níveis da vida econômica, que permita a acionistas, poupadores, clientes e autoridades, verificar que as empresas atuem e concorram entre si dentro da legalidade e do realismo, porque a ficção só é benéfica quando se apresenta como tal, sem disfarces, e não mascarada por supostas leis da história ou maquiavélicas transações econômicas. Fora do romance e da arte, viver na ficção, seja na política ou na economia, é um suicídio.
Adam Smith, o grande teórico do capitalismo e da livre economia, comparou a empresa privada a uma locomotiva. Assim como esta, colocada sobre bons trilhos e orientada na direção certa, assegurava aos viajantes uma viagem confortável e a chegada ao seu destino, uma empresa produzia riqueza, trabalho, serviços e benefícios ao conjunto da sociedade. Nesses últimos anos, o capitalismo saiu dos trilhos e mudou de direção de maneira arbitrária, e agora todos estamos pagando os estragos deste descontrole que não soubemos frear a tempo.
Por que isso aconteceu? Porque - esta é outra afirmação constante de Adam Smith - o capitalismo só funciona se a legalidade que o regula se conforma a leis justas, eqüitativas, que respeitem a liberdade, e - sobretudo - se essas leis são cumpridas. Talvez seja esse o calcanhar de Aquiles do capitalismo dos nossos dias.
Há leis geralmente bem orientadas, mas que não são cumpridas, ou são cumpridas pela metade, porque estão repletas de brechas que permitem que sejam burladas. E isso ocorre porque, neste mundo de cultura frívola, desencantada e cínica não há freios éticos contra a irresponsabilidade e a cobiça descontrolada. Temo que, dentro em breve, haverá uma epidemia de suspeição.