Viagem ao Absurdistão
Russo radicado nos Estados Unidos, Gary Shteyngart combina
a tradição satírica russa e o humor pop americano para compor
um retrato de seu país natal depois do fim do comunismo
Cristovão Tezza
RICA BARBÁRIE Shteyngart: país cheio de petróleo dividido por ridículas lutas religiosas | ||
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Nascido em 1972, na cidade que os soviéticos chamavam de Leningrado, mas que retomou o nome de São Petersburgo depois do fim do comunismo, Gary Shteyngart emigrou para os Estados Unidos aos 7 anos. Ao transformar-se em escritor, optou por entrelaçar às raízes russas aquilo que absorvera da cultura americana, e com isso vem compondo uma obra curiosa – e muito engraçada. A literatura russa sempre manteve uma veia satírica, que começou com Nikolai Gogol (1809-1852). O período soviético enterrou o potencial devastador do humor russo, cuja marca central é um agudo olhar realista transformado pelo sentimento do absurdo das forças do estado e da burocracia. Shteyngart se apoderou dessa herança. Combinou-a, contudo, com a estética do cartum, com um humor mais ligeiro e de tiradas certeiras – ainda que às vezes adolescentes. O resultado está no romance Absurdistão (tradução de Daniel Frazão e Maira Parula; Rocco; 336 páginas; 45 reais), agora lançado no Brasil.
Absurdistão conta a história do judeu russo Misha Borisovitch Vainberg, que tem 30 anos, 145 quilos e 35 milhões de dólares em sua conta bancária – esses últimos resultantes de um acordo que fez com os sócios, que, incidentalmente, também são os assassinos de seu pai. Este era um típico novo-rico dos que proliferaram no rastro da derrocada soviética. Dono de uma revenda de carros que vendia tudo, exceto carros, mandou o filho para Nova York, para que fosse circuncidado e cursasse uma universidade. Ao visitar o pai e presenciar seu assassinato, Misha não consegue mais o visto para retornar aos Estados Unidos. O romance inteiro é a sua tentativa tragicômica de sair daquele universo repulsivo de russos bêbados e deslumbrados pela civilização tecnológica. A idéia que surge é viajar ao Absurdistão, um enclave com petróleo perdido às margens do Mar Cáspio, onde ele compra um passaporte belga. Mas a eclosão de uma guerra entre os sevos e os svanïs, duas facções cristãs que se tornam inimigas em nome de coisa nenhuma, deixa-o preso num inferno de bombas e ruínas. Nesse retrato desvairado do mundo pós-soviético, Shteyngart realiza plenamente o que sempre foi a alma da sátira: por meio das situações e imagens mais absurdas, dar ao leitor uma visão nítida da realidade.
Rússia, ame-a ou deixe-a "Tive o pressentimento de que levaria muito tempo para voltar a Nova York. Isso costuma acontecer com os russos. A União Soviética acabou e as fronteiras estão abertas. Mesmo assim, quando um russo se desloca entre os dois universos, continua a sensação de imutabilidade, a impossibilidade lógica de um lugar como a Rússia existir às margens do mundo civilizado. (...) Não é de espantar que os jovens falem em ‘atravessar o cordão’ quando se referem a emigrar, como se a Rússia fosse cercada por um vasto cordão sanitário. Ou você fica na colônia de leprosos ou sai para o grande mundo e talvez espalhe suas doenças para os outros." Trecho de Absurdistão |