Entrevista:O Estado inteligente

sábado, outubro 11, 2008

2010: um salto democrático?

Idéias Eduardo Oinegue
O investment grade político

"Iniciou-se ainda no século XIX a última seqüência de pelo
menos três presidentes eleitos pelo voto direto, em que um
passou a faixa ao outro, sem mortes, sem intermediação de
um vice-presidente, sem interferência dos militares, enfim, sem
modificações nas regras eleitorais de nenhuma natureza"

Arquivo AE e fotos reprodução

NORMALIDADE NO COMEÇO
Da esquerda para a direita, Prudente, Campos Salles, Rodrigues Alves e Affonso Penna

Ao contrário do que pode parecer, a grande novidade da próxima eleição presidencial de 2010 não seria uma alteração constitucional permitindo a candidatura do presidente Luiz Inácio Lula da Silva a um terceiro mandato. Nada disso. Ainda que configurasse uma mudança indesejável, se os aliados mais animados do governo conseguissem patrocinar uma reforma na legislação vigente estariam apenas seguindo um velho (e impróprio) costume nacional de impedir que as sucessões transcorram num ambiente de normalidade. Daí por que, ainda que soe incrível para muita gente, o grande diferencial político do momento seria o presidente Lula concluir o segundo mandato e, nos termos da Carta, passar a faixa ao sucessor em cerimônia no Palácio do Planalto. Aí sim o Brasil estaria inovando. Sabe qual foi a última vez que os brasileiros tiveram a oportunidade de ver uma seqüência de pelo menos três presidentes eleitos pelo voto direto, um passando a faixa ao outro, sem mortes, sem intermediação de um vice-presidente, sem interferência dos militares, enfim, sem modificações nas regras eleitorais de qualquer natureza? Na primeira série de eleições envolvendo civis, iniciada no século XIX, durante a República Velha, quando três presidentes eleitos em seguida concluíram seu mandato e passaram a faixa ao sucessor. E sabe quantas vezes isso voltaria a se repetir no Brasil? Nenhuma vez. Voltamos a ter a chance de ver algo parecido agora, no século XXI.

Primeiro presidente civil eleito no Brasil, Prudente de Moraes (1894-1898) passou a faixa ao sucessor, Campos Salles (1898-1902), que a entregou a Rodrigues Alves (1902-1906) e este a Affonso Penna. Os três primeiros iniciaram e concluíram seu mandato. Affonso Penna morreu de pneumonia em pleno mandato, concluído pelo vice, Nilo Peçanha. Prudente adoeceu e seu vice, Manuel Vitorino, promoveu uma ruptura radical, mudando ministros nomeados pelo presidente, suspendendo obras e até trocando a sede da Presidência de lugar. Restabelecido, o presidente foi vítima de um atentado a faca que matou seu ministro da Guerra e acabou decretando estado de sítio. Isso numa ponta da seqüência. Naquele tempo, a eleição era quase uma formalidade, as fraudes e o voto de cabresto uma regra, e os presidentes recebiam em média uma votação que representava menos de 3% da população. A comparação com os dias de hoje, portanto, pode ser considerada meramente ilustrativa. Ainda assim, o insucesso que tivemos nas tentativas de repetir a mesma seqüência dimensiona o compromisso nacional com o cumprimento e a manutenção das regras.

Uma nova seqüência de eleições marcadas pela normalidade poderia ter-se iniciado com o marechal Hermes da Fonseca (1910-1914), que passou a faixa a Wenceslau Braz (1914-1918). Infelizmente, seu sucessor, Rodrigues Alves, que voltaria à Presidência, morreu de gripe espanhola. Novamente não conseguimos chegar à seqüência de três. Tentamos mais uma vez com Epitácio Pessoa (1919-1922), que passou o cargo a Arthur Bernardes, e este a Washington Luís. Mas aí aconteceu o quê? O movimento revolucionário de 1930, que melou a eleição sem dar posse a Júlio Prestes, depôs e prendeu o presidente e instalou no poder uma junta militar. Durante os quinze anos seguintes, o Brasil viveu sob a era Vargas. Seu sucessor, Eurico Gaspar Dutra, poderia ter iniciado nova seqüência ao passar a faixa novamente a Vargas, desta vez eleito pelo voto popular. Veio o suicídio, em 1954. De lá para cá, a história não deu muitas oportunidades à democracia. Juscelino Kubitschek (1956-1961) foi eleito e passou a faixa a Jânio Quadros, que renunciou. O vice, João Goulart, foi deposto pelo regime de 1964. As eleições só voltariam ao Brasil com a vitória de Tancredo Neves, que morreu. Pela Constituição em vigor em 1985, seu vice, José Sarney, deveria ter um mandato de seis anos, reduzido para cinco pela Constituição de 1988. Eleito com 35 milhões de votos na primeira eleição direta após o regime militar, Fernando Collor representou a esperança de o Brasil retomar o caminho da normalidade. A história é conhecida. Collor foi cassado pelo Congresso Nacional, e Itamar Franco, seu vice, encarregado de concluir o mandato. Eleito para sucedê-lo, Fernando Henrique Cardoso viu seus aliados tucanos emendar a Constituição para instituir a reeleição para presidente, governadores e prefeitos. A seqüência de três eleições sem interferências, portanto, começou a ser contabilizada apenas no segundo mandato de Fernando Henrique, passando pelos dois mandatos de Lula. Em 2010, elege-se o terceiro presidente seguido. Em 2014, se tudo correr bem, iguala-se o recorde da República Velha, que só poderá ser superado em 2018.

O saldo do descompromisso brasileiro com as regras é conhecido: da proclamação da República até hoje, um total de 119 anos, o Brasil teve 45 presidentes listados oficialmente. A conta inclui todos os interinos e os integrantes das juntas militares de 1930 e 1969. Dá uma média de permanência no cargo de apenas dois anos e sete meses. Para efeito de comparação, os Estados Unidos não atingiram essa quantidade de presidentes nem tendo a seu favor um século a mais de eleições. De 1789 aos dias atuais, foram 43 os eleitos, de George Washington a George W. Bush.

É fabuloso imaginar que, depois de tanto tempo, a política brasileira pode começar a se tornar repetitiva, monótona e, sobretudo, previsível – atributos negativos para filmes, livros e peças de teatro, mas extremamente positivos para a democracia. Será um passo vital. Nos últimos anos, o Brasil registrou uma fase significativa de progressos. Com o impeachment de Fernando Collor, demonstrou um vigor político admirável ao lidar sem traumas com aquele que foi o maior teste do sistema político pós-democratização. Depois de uma série fracassada de pacotes econômicos heterodoxos, o Brasil fez a lição de casa e buscou a estabilidade em bases sólidas, reduzindo o tamanho do estado pela privatização e melhorando o sistema de controle sobre as despesas do poder público. As denúncias em torno dos cartões corporativos só existem porque algum computador do governo monitora as despesas e tria os exageros. Melhor seria que não existissem, é evidente. Mas pior era antes, quando os abusos ocorriam e ninguém tomava conhecimento.

No governo Fernando Henrique, o Brasil conheceu a estabilidade do ministro da Fazenda. No governo Lula, a estabilidade do presidente do Banco Central. Cabe aos políticos decidir se os presidentes devem ficar quatro anos e ter direito à reeleição ou se melhor é estabelecer um mandato único de cinco anos, sem reeleição. Fernando Henrique e Lula têm uma lista de realizações econômicas e sociais para apresentar em oito anos. JK vai ser lembrado para sempre e ficou apenas cinco. O importante é, enfrentado esse debate, que o seja pela última vez. Já é hora de encerrar a discussão das regras e começar o jogo. Concluída a transmissão de posse do presidente Lula a seu sucessor, terão se passado impressionantes quinze anos de normalidade política. Considerada na conta a normalidade econômica recentemente conquistada, o Brasil terá atingido um patamar de maturidade inédito. Depois do investment grade econômico, o Brasil terá conquistado o investment grade político.

Eduardo Oinegue é jornalista

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