Entrevista:O Estado inteligente

domingo, janeiro 06, 2008

FERREIRA GULLAR

Diamba


Tidos como "caretas", fomos excluídos de certas festas que, a bem dizer, já não eram festas

EU SOU do Maranhão, terra da maconha, que lá se chama diamba. Dos 13 aos 15 anos, fora da escola, tornei-me uma espécie de campeão mirim de bilhar, no botequim do Constâncio, na praia do Caju. Como era de menor e não tinha dinheiro, jogava numa sala escura que havia nos fundos do boteco, num bilhar velho, e pagava moendo cana, numa pequena moenda que havia ali mesmo. Um dia, Carrapicho me chamou num canto e me deu um cigarro de diamba para eu tragar. Achei horrível, com gosto de capim velho, e quase vomito. Já Maninho experimentou e gostou. Da diamba passou para a cocaína, virou marginal, veio parar numa favela do Rio, onde sumiu. Foi encontrado muitos anos depois, internado numa clínica psiquiátrica, em Belo Horizonte, e lá morreu.
Em São Luís, naquele tempo, fumar maconha era coisa de marginal e, de vez em quando, nos subúrbios por onde eu andava, surgia um bafafá, provocado por algum maconhado que endoidara e ameaçava matar alguém a facadas. Uma tarde, na Madre de Deus, vi um sujeito sair "nuinho" na rua, com um revólver na mão ameaçando atirar em todo mundo. Amarrara um bode.
É verdade que, naquele tempo, essa expressão não existia nem era charmoso curtir um baseado, como passou a ser depois que os Beatles tornaram as drogas a salvação da juventude. Quem não fumava maconha nem cheirava cocaína era "careta", um pobre de espírito, que acreditava em gente com mais de 30 anos. Não se ia a uma festa de aniversário que não rolasse um baseado. Alguém acendia o cigarro, que passava de mão em mão. Nas festinhas de adolescente era a mesma coisa, quem não topava não era mais convidado e terminava aderindo.
A pressão para o cara se drogar era grande. Maconha e cocaína tornaram-se uma espécie de seita, que identificava quem era da tribo e quem não era. Eu, Vianinha, Teresa, Paulo Pontes não éramos. Tidos como "caretas", fomos excluídos de certas festas que, a bem dizer, já não eram festas, mas simples pretextos para se drogarem, ao som atordoante da guitarra de Jimi Hendrix. Dizia-se, com orgulho, que ele era doidão e que, de tanto injetar cocaína nas veias, já não tinha uma veia incólume nos braços e estava injetando nas da cabeça. Era, como se vê, uma maravilha! Tempos heróicos aqueles. Pena que os heróis daquele tempo deram-se todos muito mal, morrendo de overdose. Era a contracultura. E eu pensava comigo: se o homem é um ser cultural, em que se transformará destruindo a cultura?
Depois que alguns dos nossos conhecidos se deram mal e terminaram no Pinel, em camisa-de-força, passou-se a alegar que perigoso mesmo era cheirar cocaína, mas fumar maconha, não, a maconha era inofensiva. Um casal conhecido nosso -ele era um pacato funcionário público e a mulher, professora do Instituto de Educação- decidiu experimentar um baseado, numa roda de amigos. Ela amarrou um bode, quis se jogar pela janela do apartamento, foi preciso chamar a ambulância. Ficou internada alguns dias e, depois que voltou para casa, vestiu um chambre branco, fez uma cruz com cabos de vassoura e ficou a andar pela casa, murmurando palavras sem nexo. O marido mau-caráter mandou chamar os pais dela e a entregou a eles: toma que a filha é tua.
Como se vê, a maconha é inofensiva e quem fala mal dela é por puro preconceito de pequeno burguês. Sim, porque o burguês, esse não tem preconceitos, muito pelo contrário. Que seria do comércio de drogas sem essa parte avançada da classe média?
Oduvaldo Viana Filho, o nosso saudoso Vianinha, certa ocasião foi com uma equipe de filmagem para uma praia perto do Rio. Findo o trabalho, começava o fumacê. Vianinha ficava isolado e ainda tinha que suportar a catequese dos companheiros de trabalho. A pressão foi se tornando insuportável e ele chegou mesmo a admitir que estava sendo demasiado irredutível. A verdade é que aquele pessoal fumava e no dia seguinte trabalhava normalmente. Decidiu experimentar. Na quarta tragada, endoidou, sua cabeça parecia que ia estourar, amarrara um bode. Entrou mar adentro e, sem saber nadar, quase morre afogado, não fosse retirado das águas por alguns desconhecidos que o acudiram.
Mas até hoje há quem defenda a legalização da maconha, que seria uma droga leve e inofensiva. Na verdade, estudos científicos demonstraram que ela causa os mesmos males que o fumo (dependência, câncer no pulmão, bronquite crônica, enfisema), além de, em certas pessoas, provocar surtos psicóticos.
É o que dizem os médicos, mas não basta sabê-lo, uma vez que a adesão às drogas tem causas mais complexas do que a mera necessidade de contestar ou experimentar o proibido.

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