Rebelião dos homens-flor
Os monges de Mianmar, que buscam democracia, são o contrário dos homens-bomba |
O surgimento das ditaduras pode ter muitas causas e, entre elas, está quase sempre a descrença na democracia e a crença ilusória em promessas milagrosas. Outra das causas é a pressa na solução dos problemas sociais, pressa essa que nasce do desconhecimento de sua complexidade. É natural que se tenha urgência em eliminar as desigualdades e estender a todos melhores condições de vida, mas é perigoso acreditar em salvadores da pátria e em soluções de força. O mal do bom tirano é que ele acha que nunca erra, logo, quem o critica, critica-o por razões sórdidas, é inimigo do povo.
Lembro-me da visão equivocada, que eu e meus companheiros tínhamos, às vésperas do golpe de 1964. Dizíamos então que o regime político do Brasil não era democrático, porque milhões de brasileiros viviam abaixo da linha de pobreza. Era, dizíamos, uma falsa democracia. Aí, veio o golpe militar e logo, logo, aprendemos a diferença entre um regime cheio de defeitos, mas que nos permitia denunciá-los e lutar por mudanças, e um outro, que chegava prometendo tudo corrigir, mas que não permitia a ninguém abrir a boca. E quem a abriu demasiado sofreu as conseqüências da prisão, da tortura, do exílio, quando não sumiu para sempre.
Mianmar fica longe de nós, no sudeste asiático, imprensada entre a Índia e a China, que parecem tudo fazer para que não se saiba do que se passa ali. É que tanto uma quanto outra, por razões estratégicas e econômicas, têm interesse em que nada mude na pequena e pobre Mianmar. A China, que já submeteu e calou os monges budistas do Tibete, não tem qualquer simpatia pela rebeldia dos monges birmaneses em sua luta pela democracia, não só porque vê nisso um mau exemplo para seu povo, como porque, graças à ditadura do general Than Shwe, tem garantido para si o fornecimento do petróleo e do gás birmaneses. Por isso mesmo, na ONU, vetou a proposta que visava deter a violência dos militares contra os monges e militantes da causa democrática.
A Índia, embora seja uma democracia, tampouco está interessada em entrar em conflito com a ditadura birmanesa, que lhe abriu as portas para lucrativos investimentos. Isto para não falar em quase 200 empresas estrangeiras, que para lá se mudaram, em busca de mão-de-obra barata.
Desse modo, o povo birmanês está refém de uma conjugação de interesses, diante dos quais pouco parece importar a violação dos direitos humanos que ali se tornou constante em quatro décadas de ditadura militar. É muito tempo mas eis que, outro dia, centenas de monges com suas vestes cor de açafrão atravessaram o centro de Yangon, um atrás do outro, formando uma fila de 1 km de extensão. A repressão recrudesceu. Calcula-se que haja atualmente ali mais de 6.000 prisioneiros políticos, a respeito dos quais pouco se sabe.
Depois dos protestos de 1988, os militares banharam em sangue o país. Ainda assim, em 1990, o povo birmanês elegeu por ampla maioria Aung San Suu Kyi para governá-lo, mas as eleições foram anuladas e até hoje ela é mantida em prisão domiciliar. Em 1992, foi-lhe outorgado o Prêmio Nobel da Paz mas nem isso fez com que a ditadura a libertasse.
Suu Kyi é o símbolo da resistência do povo birmanês ao regime, e é em seu exemplo que se inspiram os monges budistas, que clamam pela democracia. Não são violentos, não matam ninguém, são o contrário dos homens-bomba, são os homens-flor, que têm por armas a paciência e a determinação. Sua rebelião pacífica já começa a despertar o mundo inteiro.
Agora milhões de monges de vários outros países asiáticos aderiram tacitamente ao seu protesto. Homens e mulhares, jovens e anciãos, não apenas da Ásia mas também de outros países, somam-se a esse apoio solidário.
Mianmar fica longe, do outro lado do mundo, mas a coragem de seus monges e o rosto sereno de Suu Kyi os tornam tão próximos, que até posso beijar-lhes a fronte e apertar-lhes as mãos. Sua paciência derrotará o inimigo.