Ernest Renan, 1823-1892
Rita de Cássia Camisolão, coordenadora do "Programa de Educação Anti-Racista" da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), que utilizará pela primeira vez um sistema de cotas no seu vestibular, reuniu-se há pouco com estudantes de escolas públicas para prestar esclarecimentos sobre as regras do sistema. Confrontada com a questão de saber como devem proceder os jovens com "fenótipo pardo", mas certidões de nascimento que os identificam como "brancos", fulminou: "O documento comprovatório da opção do cotista é a autodeclaração, não a certidão. O que importa é a aparência."
Está claro? Mais ou menos, pois nada é o que parece quando se trata de atribuir rótulos raciais às pessoas. Na Universidade de Brasília (UnB), também é a "aparência" que importa - mas uma aparência interpretada por sábios acadêmicos e militantes de movimentos negros, congregados em tribunais raciais que até há pouco se dedicavam à análise de fotografias dos candidatos, mas agora preferem apenas submetê-los a "entrevistas identitárias". Na UFRGS, ao contrário, a aparência do candidato é definida pelo próprio candidato, o que implica uma "fluidez racial" muito maior: "negros" da UFRGS podem bem ser "brancos" da UnB.
Na UFRGS, separaram-se 30% das vagas para egressos de escolas públicas, sendo metade delas (15% do total) reservadas para "negros". Segundo dados do IBGE, baseados no critério da autodeclaração, 7% dos habitantes do Rio Grande do Sul são "pardos" e 4% são "pretos" - ou seja, na novilíngua da reinvenção das raças, os "afrodescendentes" representam 11% da população do Estado. Eis o motivo pelo qual a UFRGS optou pela "fluidez racial": os fanáticos da raça pretendem "retificar" o perfil demográfico rio-grandense, fabricando "afrodescendentes" nas consciências e nas estatísticas. Pode-se apostar sem risco na expansão da parcela de "pardos" e "pretos" nos próximos censos, especialmente entre jovens em idade pré-universitária.
Raças humanas não existem, a não ser como construções políticas e sociais, "uma das formas de identificar as pessoas em nossa própria mente" (Thomas Sowell). Sem a intervenção do Estado, os brasileiros tendem a borrar o conceito de raça, tanto na prática da mestiçagem quanto no imaginário da identidade, o que se verifica pela expansão estatística dos "pardos" (de 21% em 1940 para 43% em 2006) e pela retração dos "brancos" (63% para 49%) e dos "pretos" (15% para 7%). Os nossos fanáticos da raça - que são, como tantos antecessores, fanáticos da "pureza racial" - projetam reverter essa tendência e fabricar um País polarizado entre "brancos" ("eurodescendentes", na sua linguagem abominável) e "negros" ou "afrodescendentes".
Produzir a bipartição racial da nação - essa é a função das cotas raciais nas universidades. Seus promotores a ocultam sob o pretexto de promoção da inclusão social, um objetivo que figura quase como consenso nacional, mas não têm nenhum interesse em políticas de qualificação do ensino público e repudiam as medidas transitórias adotadas por universidades que oferecem oportunidades especiais para candidatos provenientes de escolas públicas, sem distinção de cor.
Na UnB, dínamo principal da fábrica das raças, o sentido das coisas é cada vez mais evidente. Diante da desmoralização do método fotográfico de certificação racial, a Reitoria decidiu investir todas as fichas nas entrevistas. O método equivale a um tribunal racial político e psicológico. A comissão de entrevistadores se compõe de professores e representantes de ONGs do movimento negro. As perguntas abrangem temas como a percepção de discriminação do candidato, sua atitude diante da questão racial e suas relações com o movimento negro. A "negritude" passa a ser definida pelo potencial de alinhamento ideológico do jovem estudante com o programa racialista dos donos das chaves de entrada na universidade. (Mas, claro, nem tudo é perfeito e os cursinhos saberão preparar os candidatos para oferecerem respostas "certas" aos comissários raciais.)
No limiar das universidades, a mestiçagem real e imaginária dos brasileiros pode ser abolida pelas regras em permanente mutação dos fabricantes de raças. Mas como fazê-lo na escala da nação? O IBGE anuncia um experimento de campo para a introdução de uma "nova classificação de cor" no próximo censo. Aventa-se incluir uma variável de "origem étnica" nos questionários - algo que soa estranho quando já se conhece, por meio da investigação científica, a ancestralidade genética da população. A finalidade, mal ocultada, é fazer surgir, por uma mágica que ainda se busca, uma nação repartida em "brancos" e "afrodescendentes". O mágico presuntivo é José Luís Petruccelli, responsável pelo experimento, que abriu o jogo. "Nós não vamos direto ao assunto, como era feito: vai ter uma introdução." Petruccelli é um intelectual engajado na fabricação de raças. Seus pesquisadores saberão persuadir os entrevistados a formular respostas "certas", isto é, adaptadas ao dogma oficial.
Todos os dias, a nação se refaz pela decisão tácita de cada indivíduo de continuar a viver sob o princípio da igualdade política e jurídica inscrito no pacto republicano. A fábrica das raças e do racismo oferece a proposta de se responder "não" a esse "plebiscito cotidiano". Seus gerentes estão dizendo que há duas nações no Brasil - e que no lugar do princípio da igualdade podemos, no máximo, conviver sob um frágil arranjo diplomático de distribuição de benesses e privilégios entre "nações étnicas" separadas pelo abismo da cultura.
Timothy Mulholland, o reitor da UnB, alerta: "Criamos um sistema para jovens negros que, às vezes, é visto por alguns alunos como brincadeira." Ele está certo. Não se brinca com raça ou etnia e as provas disso estão por toda parte - da África do Sul a Ruanda e da antiga Iugoslávia à Malásia.