O caminho do patriarca
Um projeto internacional recria o trajeto percorrido
pelo personagem bíblico Abraão, numa tentativa
de integrar os povos do Oriente Médio
Adriana Dias Lopes
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O Oriente Médio é o berço das três maiores religiões monoteístas – o judaísmo, o cristianismo e o islamismo. Segundo a Bíblia, foi nessa região, há 4.000 anos, que o pastor de cabras Abrão (depois, Abraão) ouviu o chamado de Deus para abandonar o conforto do lar e partir rumo à Terra Prometida. Com 75 anos e casado com uma mulher estéril, Abrão receberia em troca herdeiros que dariam início a um grande povo – o judaico. Ele não só obedeceu cegamente, como, ao longo do caminho, deu provas incansáveis de sua crença num Deus único. A história do patriarca de Israel, considerado o fundador do monoteísmo, serviu de inspiração para um projeto ambicioso do antropólogo americano William Ury, da Universidade Harvard e especialista em técnicas de negociação. Com o intuito de integrar de alguma forma essa região conflagrada, ele decidiu recriar o caminho de Abraão e transformá-lo em rota de peregrinação, a exemplo do que acontece com Santiago de Compostela, na Espanha. "Queremos que esse caminho se torne o símbolo de tolerância religiosa em meio a tantos obstáculos", disse Ury a VEJA. O primeiro trecho – 120 quilômetros, na Jordânia – está previsto para ser inaugurado em maio de 2008. Pode ser feito a pé ou de ônibus.
Não há vestígios concretos da existência de Abraão. Sua figura ganha corpo nas páginas da Bíblia, da Torá e do Corão. Os registros são, portanto, desencontrados. Jesus Cristo foi o quadragésimo descendente de Abraão, segundo o Evangelho de São Mateus. Ou o 56º, de acordo com o Evangelho de São Lucas, na mesma Bíblia. Para os muçulmanos, o patriarca ofereceu seu filho Ismael (nascido de uma relação com a escrava Agar) em sacrifício a Deus. Para judeus e cristãos, o filho a ser sacrificado foi Isaac, fruto de seu casamento com Sara. Para traçar o caminho de Abraão, desde o sul da Turquia até Israel, a equipe de Ury levou quatro anos. Além de referências colhidas nas escrituras de judeus, cristãos e muçulmanos, o antropólogo americano se baseou na tradição local para compor o trajeto. "Trata-se de uma recriação simbólica; nenhum documento traz informações suficientes que permitam a construção exata da rota", diz Ury. Se foi difícil refazer os passos de Abraão, mais complicado ainda será segui-los. O caminho atravessa territórios divididos pelo ódio. "Não há dúvida de que abrir esse caminho é um enorme desafio. Tudo será feito aos poucos, com muita conversa, para buscar apoio dos governos e da população da região", diz o americano Daniel Adamson, especialista em desenvolvimento de turismo sustentável e um dos coordenadores do projeto.
A rota principal, a ser aberta em 2010 (se Deus quiser), conta com 1 100 quilômetros e atravessa países com inimizades históricas. Começa em Urfa, na Turquia, um dos possíveis locais de nascimento de Abraão. Além da Jordânia, passa pela Síria e por Israel, onde o patriarca, segundo a tradição judaico-cristã, ofereceu seu filho Isaac em sacrifício a Deus. A intenção é estender o caminho até o Egito e, quando a guerra no Iraque terminar, incluir o país na rota. Ury também quer que Meca, na fechadíssima Arábia Saudita, faça parte do percurso (não custa sonhar, Ury). Para se ter uma idéia das dificuldades dos eventuais peregrinos, basta lembrar que a ditadura de Bashar Assad raramente permite a entrada na Síria de quem tenha registro de passagem por Israel. Em novembro do ano passado, vinte religiosos e estudiosos do Oriente Médio, entre eles os brasileiros Paulo Farah, diretor do Centro de Estudos Árabes da Universidade de São Paulo, e o rabino Nilton Bonder, do Rio de Janeiro, percorreram de ônibus, em duas semanas, os 1 100 quilômetros. Ao longo do trajeto, eles tiveram de atravessar cerca de vinte barreiras militares. "Não enfrentamos problemas de monta. Foi só apresentar o passaporte, sem precisar falar. O documento brasileiro foi muito bem-vindo. Mas, antes, tive o cuidado de renovar o meu, para que os registros de minhas visitas a Israel no passado não aparecessem", conta o rabino. Nessas horas, ser brasileiro é mesmo uma bênção.
A trilha passa por cidades com infra-estrutura razoável, especialmente as capitais. Mas a maior parte do caminho fica na zona rural, em descampados cuja temperatura pode chegar a 50 graus durante o verão. Uma das idéias do projeto é treinar guias locais com domínio de pelo menos dois idiomas ocidentais. "Eles poderão levar barracas e montar estações de descanso para o turista", diz Adamson. Outra possibilidade é incentivar pessoas da região a abrigar o visitante em suas casas. Para evitar o choque de civilizações, um código de conduta para o turista deverá ser criado. O consumo de bebida alcoólica, por exemplo, vetada pelo islamismo, só será permitido em hotéis internacionais.
Orçado em 50 milhões de dólares, o projeto já recebeu recursos da Fundação Rockefeller, da própria Universidade Harvard e de empresários pesos-pesados dos Estados Unidos e da Europa. No Brasil, ele foi apresentado oficialmente em meados de setembro, durante um coquetel na Fundação Oscar Americano, em São Paulo. Entre os presentes, estava o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso. Um grupo de dez empresários paulistas se comprometeu a doar 1,5 milhão de dólares nos próximos três anos.