O governo desiste de promover a volta
da censura prévia aos programas de TV
Marcelo Marthe
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O governo recuou de uma iniciativa que ameaçava a liberdade de expressão no Brasil. Graças à pressão da imprensa, das emissoras, de partidos políticos e de artistas, o Ministério da Justiça baixou um novo conjunto de normas para a classificação indicativa da televisão, em substituição a uma portaria lançada em fevereiro passado com inequívoco viés autoritário. Se tivesse prevalecido, a portaria agora cancelada poderia reintroduzir no país um mecanismo equivalente à censura prévia dos tempos da ditadura militar. Para definir em que horário uma novela ou filme deveriam ser exibidos, as redes teriam de submetê-los ao crivo dos burocratas do Departamento de Justiça e Classificação antes de levá-los ao ar. Em certos casos, é verdade, poderiam até ser dispensadas desse procedimento – mas, também para isso, dependeriam de autorização prévia. A nova regra abole essa aberração. As redes terão autonomia para decidir se um programa é mais adequado para exibição depois das 8 (a faixa para maiores de 12 anos) ou das 9 da noite (a dos 14 anos), e assim por diante. A recente portaria nº 1220 sepulta ainda um dispositivo que abria caminho para o governo monitorar o conteúdo dos telejornais. Esse entulho antidemocrático – à altura das investidas do ditador Hugo Chávez contra as redes de TV venezuelanas – foi trocado pela menção explícita de que o noticiário está livre de controle.
A classificação indicativa, em si, é uma prática legítima. Ela tem a função de fornecer informações sobre a presença de temas como sexo, violência e drogas na programação, para que os pais possam deliberar sobre aquilo que seus filhos podem ou não ver na TV. Deve-se estar atento, contudo, para as supostas boas intenções do governo petista nessa área. Boa parte de seus integrantes volta e meia expressa o anseio de coexistir apenas com os jornais, revistas e emissoras dóceis ao poder (e ao dinheiro que dele emana). Anseio, aliás, que quase resultou na criação de uma excrescência chamada Conselho Federal de Jornalismo, idealizada tão-somente para intimidar a imprensa. Da forma como está redigida, a nova portaria não é outro cavalo-de-tróia em cujo bojo se escondem dispositivos stalinistas. Mas, como leis são sempre interpretadas e levadas a cabo por pessoas designadas para esse fim, nas mãos de um comissário com DNA comunista até um texto correto pode servir a objetivos questionáveis. Faz-se essa observação porque o grande defensor da portaria anterior, o advogado José Eduardo Romão, continua a ocupar o cargo de diretor do Departamento de Classificação. Romão chegou a declarar que o governo passaria a discutir a "questão das concessões" das redes caso elas não se enquadrassem. Ele é adepto de um certo "Direito Achado na Rua", corrente da retroesquerda que questiona o arcabouço legal vigente no país, por seu suposto matiz de classe. Se a sociedade não estivesse alerta, o time de censores e estagiários comandado por Romão teria conquistado um poder de vida e morte sobre a programação da TV.
As redes ainda não se dão por totalmente satisfeitas. Acham que a Portaria nº 1220 traz pontos nebulosos – a forma como se dará o trâmite de autoclassificação dos programas é um exemplo. Mas o que mais as aflige é a espinha dorsal da classificação: a vinculação entre faixas etárias e horários de exibição. Amparado no Estatuto da Criança e do Adolescente, o ministério manteve-se irredutível nesse quesito. E também na obrigatoriedade de obedecer a ele nos estados com fuso diferente (ainda que a nova portaria dê um prazo de seis meses para as emissoras se adaptarem). O questionamento das redes tem sua razão de ser. De fato, a vinculação é uma camisa-de-força que reduz sua autonomia e confere ao estado o poder de influir na programação. Há que reconhecer, entretanto, que as redes estão pagando o preço por terem sido até hoje omissas e incapazes de chegar a um denominador comum em torno da solução ideal: um sistema de auto-regulamentação, como o que já vigora no mercado publicitário. Sem dispor desse filtro, a TV brasileira continuará a ser um prato cheio para os apetites dos comissários revolucionários de plantão.