Jarbas Passarinho
O Senado da República, no período autoritário, foi o palco dos grandes debates institucionais, que contribuíram para o avanço das medidas da chamada distensão para a democracia plena. Casa de ex-ministros, governadores e até de um ex-primeiro-ministro - na farsa parlamentarista durante parte do governo Jango -, os senadores articulavam a experiência com a serenidade na tribuna parlamentar. Os políticos são normalmente mal conceituados em todo o mundo livre, mas nos dias atuais, no Brasil, o desconceito é tão forte que pode até causar perigo à prática da democracia representativa.
Os lamentáveis acontecimentos no Senado provocam declarações que vão muito além da simples decepção popular e de manifestações contundentes de senadores que se sentem mal com a repercussão negativa que atinge a Casa toda. O senador Jarbas Vasconcelos chegou a conceder à acrimônia ao dizer que 'o Senado fede'. Na mídia houve espaço para um entrevistado que, impregnado de fel, propôs a solução radical: fechar o Senado. Deve ter lido nos idos dos anos 1970 o professor Reinhold Niebuhr, da Universidade de Yale, que considerava o comunismo e a democracia duas utopias. A revolta associada ao desencanto lembrou-me uma frase que ouvi proferida por Tenório Cavalcanti: 'Não se pode culpar a vassoura pela existência do lixo.' Eu tomaria esse pensamento para aplicá-lo ao que se passa no Senado, com investigações que lembram o comércio honrado de compra e venda de gado bovino.
O clima criado pela defesa inconvincente dos senadores, sob forte denúncia de falta de decoro, flagrantemente, levou um deles a renunciar para escapar de uma condenação no Conselho de Ética. Mal renunciou, ao suplente, que legalmente deve assumir a cadeira, o corregedor já diz que vai investigar os ilícitos que originaram os processos a que responde na Justiça. Entre as acusações - aliás, já muito repetidas na capital da República - há desde a grilagem de terras em Brasília até desvio de dinheiro público. Como diz uma cediça frase, trata-se não de um curriculum vitae, mas de folha corrida policial. Justificando-se por antecipar a decisão de investigar o futuro nobre senador, diz o corregedor Romeu Tuma que 'não seria possível, por exemplo, aceitar no Senado o Fernandinho Beira-Mar, só porque fosse eleito pelo povo'.
A acabrunhante sucessão das ocorrências desprimorosas começa a afetar a democracia representativa. Mestre Miguel Reale citava Georges Burdeau, para quem a democracia representativa é governada ou governante. Naquela o eleitor abandona sua soberania para o representante que elegeu. Difere da democracia governante, em que, além de eleger seu representante, o povo mantém seu direito de participar das decisões nas sessões públicas do Congresso, por exemplo, nas passeatas, nos protestos organizados, na pressão sobre o Congresso ou o Executivo. Na Constituinte de 1987 existiu a democracia governante, com a participação intensa das sessões públicas. As minorias, antes sem acesso ao Parlamento, abarrotavam as salas de reuniões e debates. Após a Constituição, essa participação diminuiu.
Os exemplos nefastos - ontem da Câmara, sede dos mensaleiros e dos sanguessugas, e hoje do Senado - vêm abalando a crença na democracia representativa governada ou governante e dando chance às câmaras de chancela dos regimes totalitários. Sartori ensina que 'a democracia é, hoje, uma filosofia, uma maneira de viver, e só acessoriamente uma forma de governo'. Defini-la é difícil, tais as suas variações. Os defensores de qualquer tipo de regime reclamam a denominação de democratas. Na guerra fria, os comunistas da Europa do Leste tinham as 'Repúblicas Democráticas Populares', em pleno regime totalitário. Em contrapartida, o chamado mundo livre tinha, entre as suas democracias anticomunistas, a Ásia, a África do Sul e as ditaduras da América Latina.
No Brasil, ainda vigente o AI-5, o presidente Geisel definiu o regime como 'democracia relativa', baseado em que nem todas as liberdades fundamentais estavam impedidas e, de acordo com a lição da História, ao contrário dos regimes totalitários, que só mudam pela violência, os autoritários, com o tempo, cedem à restauração do regime democrático.
Evo Morales proclama democrático o regime totalitário de Fidel Castro. O coronel Hugo Chávez governa por decreto, impede a liberdade de expressão do pensamento, caminha para ter partido único, mas sustenta ser uma democracia socialista do século 21. O presidente russo, Wladimir Putin, em resposta a um repórter, disse há poucos dias que 'a democracia deve ser adaptada à realidade da Rússia de hoje'. E até o diretor-geral da Polícia Federal do Brasil afirmou sem pestanejar que 'não existem valores absolutos para delinqüentes, cuja privacidade deve ser invadida em defesa dos interesses da sociedade'. Só que esses proclamados direitos têm sido justificativa para invadir a privacidade não só de delinqüentes.
A leniência fragiliza a democracia. Os universitários da USP invadiram as instalações da Reitoria, mantiveram-se numa espécie de soviete por mais de 50 dias, afrontaram a Justiça, negando-se a deixar o prédio ocupado, depredaram as instalações e furtaram o patrimônio universitário. Que tipo de liberdades fundamentais exerceram? Os índios, ameaçando derrubar as torres de transmissão de eletricidade da Eletronorte, para obrigar o governo a atender a suas reivindicações, em qual direito democrático se amparavam? Os sem-terra, que invadem propriedades legítimas e produtivas, violam direito constitucional ou estão fazendo reforma agrária num regime democrático apenas acessório, como quer Burdeau? O comunismo, depois de 74 anos de poder totalitário, demonstrou que é uma utopia. Teria acertado o professor de Yale ao profetizar, faz 37 anos, que a democracia é, também, uma utopia?