As duas instâncias conviveram na figura de Antonio Carlos
Magalhães, a quem a Bahia rendia as honras de imperador
Fernando Vivas |
Antonio Carlos Magalhães: o "Malvadeza" fez um bem ao impulsionar a economia da Bahia |
Os conceitos de arcaico e moderno conviveram na figura do senador Antonio Carlos Magalhães. Ora ele encarnava o coronel nordestino de métodos truculentos, ora o administrador competente, responsável pelo grande desenvolvimento econômico da Bahia nas últimas décadas. Ao longo de meio século, ele quase nunca arredou pé do poder ou de suas proximidades mais íntimas. Dono de um extraordinário senso de sobrevivência, emprestou apoio a presidentes e grupos políticos quando estavam no auge – e não titubeou em migrar para a oposição quando a força deles declinou. Em toda a sua trajetória, só não mudou em relação à defesa intransigente da Bahia. "Sou o baiano que mais amou a Bahia. Esse meu amor talvez tenha sido a coisa mais importante da minha vida", dizia. A era ACM se encerrou para todo o sempre na manhã da última sexta-feira. Depois de 36 dias internado no Instituto do Coração, em São Paulo, o cacique do Partido Democratas sucumbiu à falência de múltiplos órgãos. Ele completaria 80 anos em setembro e sofria de insuficiência cardíaca crônica, diabetes e problemas renais e gastrointestinais.
Fotos Álbum de família, Joedson Alves/AE e Roberto Jayme |
Em família: No alto, à esquerda, com ACM Neto, sua última tentativa de fazer um sucessor. À esqueda e à direita, ACM abraça o filho Luís Eduardo, em dois momentos. Morto em 1998, Luís Eduardo chegou a presidente da Câmara e era virtual candidato ao Planalto |
Filho de uma família de classe média, ACM começou a trabalhar ainda na adolescência como jornalista. Depois, seguiu o exemplo do pai, Francisco Magalhães, um médico e professor universitário que chegou a ser deputado federal. Francisco introduziu o filho na política e legou-lhe a amizade de Juscelino Kubitschek. Enquanto JK esteve no poder, a presença de ACM no palácio tornou-se tão freqüente que ele passou a ser chamado de "despertador de Juscelino". Quando os ventos mudaram, começou a defender os militares. Transformou-se em um dos alicerces civis do regime dos generais instaurado em 1964. Em troca, eles o tornaram prefeito de Salvador, presidente da Eletrobrás e o elegeram duas vezes governador da Bahia. Em 1984, rompeu com o regime militar e ganhou o apelido de "Toninho Malvadeza" – a princípio, um elogio de sinais trocados, que dava conta de sua falta de complacência com os adversários. Naquele ano, recusou-se a apoiar Paulo Maluf, candidato dos militares a presidente, e aderiu ao oposicionista Tancredo Neves. O então ministro da Aeronáutica, Délio Jardim de Mattos, acusou-o de trair a revolução. Sua resposta fissurou ainda mais o apoio político ao governo dos generais: "Traidor é quem apóia um corrupto para a Presidência". Na democracia, ACM foi governador, ministro das Comunicações e senador. Apoiou Fernando Collor e, com idas e vindas, Fernando Henrique Cardoso e Luiz Inácio Lula da Silva. Só não se aproximou de Itamar Franco, de quem dizia nunca ter gostado. Sobre suas seguidas metamorfoses, dizia: "Mudar é uma característica dos homens inteligentes".
O sucesso na vida pública foi acompanhado de tragédias na vida pessoal. ACM teve quatro filhos com Arlete Maron. Como o primeiro, Antonio Carlos Júnior, não tinha pendores políticos, o senador entregou-lhe o comando dos negócios que construiu paralelamente à sua atividade principal. Na Bahia, ele era dono da retransmissora da Rede Globo, de um jornal, de uma construtora e de uma gráfica. Atualizada, sua fortuna declarada em 2002 à Justiça Eleitoral soma 150 milhões de reais. Uma das filhas, Tereza Helena, casou-se com o dono da empreiteira OAS. A outra, Ana Lúcia, suicidou-se em 1986, aos 28 anos. ACM depositou em Luís Eduardo suas esperanças de perpetuar o clã na política. Tinha tudo para dar certo, não fosse a implacabilidade do destino: Luís Eduardo vinha construindo uma carreira brilhante de deputado federal e era um virtual candidato à Presidência da República quando foi fulminado por um infarto, em 1998. Tinha apenas 43 anos. "Por que não eu?", desesperou-se ACM. Ele não se recuperaria do baque.
Fotos Orlando Brito, Ed Ferreira/AE e Roberto Stuckert Filho/Ag. O Globo |
À esquerda, com Fernando Henrique Cardoso, em 1997. No alto, à direita, em 2000, com o inimigo Jader Barbalho. À direita, em conversa com José Roberto Arruda, com quem quebrou o sigilo do Senado |
Depois da morte de Luís Eduardo, o senador perdeu o foco. Em 2000, abriu uma guerra para evitar que Jader Barbalho (PMDB-PA) se tornasse presidente do Senado. Conseguiu levar o inimigo à renúncia. Mas antes participou da violação do sigilo de uma votação secreta no Senado e, para não ser cassado, foi obrigado também a renunciar. Ainda que sem cargo, ACM não perdeu a força em seus domínios – e, tal como o seu amigo Roberto Marinho, da Rede Globo, sabia que o poder tinha de ser constantemente exibido para que ninguém esquecesse quem o detinha. Numa tarde de 2001, por exemplo, telefonou ao governador da Bahia, César Borges, convocando-o para ir encontrar-se com um empresário. Borges respondeu que não era possível, pois inauguraria uma escola. "Falei para vir agora. Deixe a inauguração para amanhã", esbravejou ACM, no que foi prontamente atendido. Na mesma época, ele acabava de chegar a Salvador quando deparou com um congestionamento causado por uma obra da prefeitura na entrada da cidade. Ligou irritado para Antônio Imbassahy, então prefeito: "Como você faz uma obra dessas em dia de semana sem me avisar, seu irresponsável?". Mas o velho cacique também tinha seus momentos de ternura. Mostrava paciência para ouvir pedidos de toda natureza, o que explica, em parte, seu imenso carisma na Bahia. Era comum que os taxistas de Salvador não cobrassem as corridas das pessoas que se dirigiam à casa dele, em gratidão a favores que ACM lhes tinha prestado.
Na eleição do ano passado, o senador e seu grupo foram derrotados em seu estado pelo PT. Por mais que tentem, no entanto, seus detratores não conseguirão apagar sua marca. Como prefeito de Salvador, nos anos 60, ele mudou o projeto urbanístico e revitalizou a capital. Premiado com o governo estadual, atraiu investimentos de grande porte, como o Centro Industrial de Aratu. Depois, articulou a construção do Pólo Petroquímico de Camaçari. De volta ao governo estadual nos anos 90, investiu fortemente em turismo, transformando o sul da Bahia, principalmente, num paraíso de resorts e condomínios de luxo. Também teve um papel determinante para que a Ford instalasse um pólo automobilístico no estado. De 1971, seu primeiro mandato como governador, a 2006, quando seu grupo político deixou o poder, o PIB da Bahia pulou de 10 bilhões para 52 bilhões de dólares. Um crescimento de 420%, maior do que o do país e o do Nordeste. Apesar desse legado, o carlismo sai de cena sem deixar herdeiros. Após a morte de Luís Eduardo, ACM passou a acalentar a esperança de que o deputado Antonio Carlos Magalhães Neto pudesse suceder-lhe. Mas não houve tempo para transformá-lo em líder na Bahia – condição essencial para a manutenção do carlismo. Objeto de amores e ódios, ACM, quando estava no topo, costumava destilar uma verdade embrulhada em ironia: "Sou temido porque ganho. Os vencedores são sempre temidos".
Sempre do lado dos vencedores Dono de um extraordinário senso de sobrevivência, ACM esteve no poder ou muito próximo a ele durante meio século. Na maioria de suas disputas, revelou-se um adversário implacável – o que lhe garantiu grandes amores e ódios
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