Entrevista:O Estado inteligente

quarta-feira, abril 04, 2007

Uma amarga anistia dilui a crise militar Élio Gaspari




Folha de S. Paulo
4/4/2007

Como ficam, perante a lei, os doutores que autorizaram e fecharam o acordo com os amotinados da FAB?

EVITANDO ENFRENTAR com as leis militares a insubordinação dos sargentos da FAB que operam o sistema de controle de vôos do país, Nosso Guia amarelou em pelo menos duas ocasiões. A primeira, em novembro, quando a FAB recuou da decisão de aquartelar os militares. Semanas depois, havia brigadeiros negociando com sargentos. Era o início da pane hierárquica. A segunda, na última sexta-feira, quando mandou o ministro do Planejamento para uma reunião sindical com amotinados que haviam posado para fotografias, refastelados e coloridos. Pior: desautorizou o comandante da Aeronáutica, que determinara a prisão dos insubordinados.
O argumento segundo o qual Lula pode agir assim porque é o comandante supremo das Forças Armadas ofende a inteligência dos passageiros. Ele pode nomear um cabo da reserva para o Ministério da Defesa, mas falta competência ao presidente (seja qual for) para reconhecer sargentos como negociadores de um serviço da Força Aérea.
O motim passou para a instância do Ministério Público Militar. Lá, crime é crime, e motim é motim. Nesse curso, o país será levado a conviver com mais apagões e uma crise militar anexa a uma CPI. Essa situação, provocada pela leviandade do presidente da República, pode ser remediada votando-se no Congresso uma anistia para os amotinados. Uma proposta desse tipo só é razoável para quem acha que, em nome da preservação da ordem nos aeroportos, os sargentos-operadores não devem ser mandados para a cadeia.
Parece idéia descabida, mas há antecedentes de mazorcas militares sedadas por anistias:
Em novembro de 1910, os marinheiros dos principais navios de guerra brasileiros rebelaram-se na Baía da Guanabara. Dispararam sobre a cidade e ameaçaram bombardeá-la se não tivessem algumas reivindicações atendidas. Entre elas, estava a abolição da chibata como forma de punição disciplinar. A baderna durou quatro dias, e o marechal Hermes de Fonseca cedeu. Em seguida, o Congresso anistiou os revoltosos. O líder da iniciativa foi Rui Barbosa. (Semanas depois, veio a forra, mas essa é outra história.)
Em fevereiro de 1956, cinco oficiais da FAB apoderaram-se de dois aviões militares e foram para Jacareacanga, no meio da Amazônia. Pretendiam iniciar uma revolta que derrubaria o presidente Juscelino Kubitschek. Cerca de 60 oficiais das tropas do Rio, de Salvador e de Fortaleza recusaram-se a reprimir o levante. Dezenove dias depois, os rebeldes renderam-se. Em dezembro de 1959, outra revolta. Os oficiais amotinados seqüestraram um avião de passageiros (primeiro episódio desse tipo da história nacional) e instalaram-se em Aragarças. Capitularam 36 horas depois. Em abril de 1960, com o apoio de Kubitschek, o Congresso anistiou os revoltosos.
As anistias destinaram-se a preservar a ordem (1910) e a evitar o aprofundamento de uma crônica crise militar (1960). No século passado, a mazorca dos quartéis vinha tanto de baixo como de cima.
O motim dos sargentos da FAB representou uma humilhação para a oficialidade. Fazendo-se de conta que Raúl Castro não é o "General Máximo" de Cuba e que a hierarquia e a disciplina militares são entes da razão conservadora, imagine-se uma sapataria. Nela ocorre uma greve de vendedores porque o gerente transferiu um funcionário. Eles cruzam os braços, deixam a freguesia descalça, exigem vagas em outra loja, aumento salarial e a revogação da transferência. Desautorizado pela diretoria, como o gerente cuidará da loja no dia seguinte?
Na mesma linha, imagine-se que a greve ocorreu numa cidade onde é impossível repor a mão de obra dos vendedores. Sem eles, a sapataria não pode funcionar.
O caminho que leva os amotinados à cadeia pode conduzir os aeroportos ao inferno. Guardadas as proporções, essa foi a preocupação de Rui Barbosa em 1910. Os amotinados enfrentarão um processo que pode durar meses, ao fim do qual tudo indica que serão condenados. E como ficam, perante a lei, os negociadores que fecharam um acordo com eles?
Já apareceram comissários que conhecem "brigadeiros progressistas" e parlamentares que recebem acenos de oficiais indignados. Essas duas espécies estão por aí, ciscando nos conciliábulos de Brasília.
São nefandas figuras, retratadas em 1965 pelo marechal Castello Branco: "Eu os identifico a todos. E são muitos deles, os mesmos que, desde 1930, como vivandeiras alvoroçadas, vêm aos bivaques bolir com os granadeiros e provocar extravagâncias do poder militar".
Desde 1981, o Brasil não vê extravagâncias do poder militar. O que menos se precisa é do ressurgimento das vivandeiras.

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