Entrevista:O Estado inteligente

domingo, abril 15, 2007

FERREIRA GULLAR

Cartas anônimas


Uma carta com letras recortadas de jornal dizia o seguinte: "Sua mulher o está traindo"

CASADO HÁ mais de 30 anos com Maria Eugênia, Geninha, como ele a chamava, Deodato, aposentado, vivia sem grandes júbilos mas também sem sobressaltos. Aliás, se sobressaltos havia, eram provocados por seu filho Benício que, não sabia por que, às vezes começava a resmungar pelos cantos e a implicar com a mãe, que sempre o tratou com o carinho dispensado aos filhos únicos.
Essa implicância se agravou depois que ele rompeu o namoro com Alice, sua colega na procuradoria da prefeitura. A moça nunca entendeu o que o levara àquela decisão, uma vez que, semanas antes, falara em casar-se com ela. Rompeu de maneira intempestiva e drástica, chegando mesmo, certa noite, a expulsá-la de sua casa quando, ao voltar do trabalho, encontrou-a conversando com dona Geninha, na sala. A atitude, demasiado grosseira, provocou a reação de Deodato que, atraído pelos berros do filho, veio até a sala e o repreendeu. A reação de Benício foi mais violenta ainda, desta vez contra o pai, que ele agarrou pelo pescoço, ameaçando estrangulá-lo. No dia seguinte, Benício pediu desculpas ao pai e se manteve, desde então, relativamente calmo, ainda que às vezes voltasse a resmungar para a apreensão dos pais.
Fora esses problemas, a vida de Deodato transcorria em paz, uma vez que ele e a mulher se entendiam muito bem. Ela às vezes saía para visitar uma antiga amiga de colégio, outras vezes era ele que ia até o boteco do Dimas, ali na esquina, jogar um carteado.
Foi assim que, com espanto, leu a carta que encontrou, sob a porta da rua, endereçada a ele. Uma carta anônima que, com letras recortadas de jornal, dizia o seguinte: "Sua mulher o está traindo".
Dobrou o envelope e meteu-o no bolso, sem saber o que pensar. À mesa do café, Geninha percebeu alguma coisa estranha nele e perguntou se havia acontecido alguma coisa. Ele respondeu que não, não havia acontecido nada e, mal terminou o café, saiu para a rua.
Sentado num banco da pracinha que ficava a uma quadra de sua casa, releu a carta anônima. Estava certo de que se tratava de uma calúnia, já que tinha total confiança em Geninha que, se fora namoradeira quando jovem, tornara-se um exemplo de esposa após o casamento. Mas quem teria lhe enviado aquela carta e com que objetivo? Pensou um instante e decidiu rasgá-la para evitar que a mulher tomasse conhecimento daquilo.
Passaram-se alguns dias, ele já nem mais pensava no assunto, quando outra carta apareceu debaixo da porta: "Não se iluda, ela está traindo você". Deodato, desta vez, sentiu-se realmente abalado pela denúncia. Não que lhe desse crédito, mas a insistência do acusador passou a preocupá-lo. Que diabo levaria uma pessoa desconhecida a incriminar-lhe a esposa, que ele sabia fiel e honesta? Seria produto de simples equívoco ou a perversidade de alguém? Não tinha resposta para essas perguntas e, então, chegou a pensar que a causa fossem as visitas de Geninha a tal amiga de colégio. Podia ser que alguém, vendo-a entrar com alguma freqüência naquele prédio, talvez supusesse que fosse encontrar-se com algum homem, um amante... Não, aquilo não tinha cabimento, disse Deodato a si mesmo, depois de rasgar a segunda carta anônima e jogá-la na privada.
A verdade, porém, é que, quando a terceira carta apareceu debaixo da porta, teve ímpeto de mostrá-la à esposa e pedir-lhe explicações. "Alguma razão deveria haver para que uma pessoa se desse ao trabalho de mandar-me essas denúncias", pensou ele, atormentado. Não quis sentar-se à mesa do café da manhã com a mulher, alegando não ter fome, vestiu o paletó e saiu, sem dar explicações.
Ficou rodando pelas ruas, sem saber o que fazer para acabar com aquele tormento. Nem podia pedir conselho a algum amigo, pois levantaria suspeitas contra a respeitabilidade da esposa. Não voltou para almoçar, o que levou Geninha a telefonar para o trabalho do filho e perguntar se sabia do pai. Apareceu para o jantar, mas não pronunciou uma só palavra. Benício e a mãe se entreolhavam, sem entender. Após o jantar, trancou-se no escritório e ali dormiu, sentado na poltrona. Quando despertou, o filho saía para o trabalho. Assim que ele transpôs a porta da rua, foi espiar pela janela e o viu parado, mexendo na pasta que sempre levava consigo. Dela tirou um envelope e, após reparar que ninguém o observava, colocou-o cuidadosamente debaixo da porta, que acabara de transpor. Em seguida, fechou a pasta e dirigiu-se calmamente para o ponto de ônibus.

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