Entrevista:O Estado inteligente

terça-feira, abril 17, 2007

AUGUSTO NUNES Ainda haverá juízes no Brasil?


Em maio de 1993, quando a juíza Denise Frossard botou na cadeia os chefões do jogo-do-bicho no Rio, até cobras, avestruzes e elefantes sabiam que jazia em algum lugar do passado o estereótipo cinzelado pelo imaginário popular. Dele emergia um suburbano esperto, alternadamente durão e generoso, que administrava prósperos zoólogicos virtuais, amansava com propinas o guarda da esquina e só mostrava a face escura se ameaçado por concorrentes.

As mudanças começaram nos anos 70. Fantasiados de padroeiros de escolas de samba e times de futebol, os banqueiros do bicho saíram dos guetos em bairros distantes para confraternizar com políticos e autoridades nos salões e restaurantes da Zona Sul. Trocaram a propina do guarda pela porcentagem do delegado. E compreenderam ter chegado a hora de usar a jogatina inventada pelo Barão de Drummond como fachada para atividades criminosas muito mais lucrativas.

Graças às investigações que alicerçaram a histórica sentença de Denise Frossard, o Brasil descobriu que se consumara a grande e perturbadora metamorfose. Os velhos bicheiros se haviam transformado em traficantes de drogas e contrabandistas de armas. E já adubavam o terreno onde logo vicejariam as casas de bingo.

No dia do julgamento, o país fez uma constatação inquietante e uma descoberta animadora. A constatação: alguns acusados talvez nem soubessem o bicho que dera na véspera, mas poderiam informar em qualquer moeda, centavos incluídos, o preço de uma metralhadora Uzi. A descoberta: havia juízes no Brasil. E dispostos a prender bandidos graúdos: quase todos foram condenados a seis anos de prisão.

Talvez fosse o começo da contra-ofensiva do Brasil honesto, imaginaram otimistas militantes. A taxa de esperança baixou sensivelmente três anos mais tarde, com a libertação da turma. E foi reduzida a zero pela Operação Hurricane, concebida e executada pela Polícia Federal.

Desta vez, todas as constatações são inquietantes, todas as descobertas são desanimadoras. Aos bandidos de sempre - gente como Anísio da Beija-Flor, Turcão, Capitão Guimarães - juntaram-se cúmplices de alto calibre. A quadrilha hoje abriga, além de figurões da polícia, também desembargadores e até ministros de tribunais incrustados na cúpula do Judiciário. Haverá no Brasil juízes dispostos a prender quem quer que seja? Mesmo que se trate do colega instalado no gabinete logo ao lado? Logo saberemos.

No país que não depende do Bolsa Família, nada é tão estimulante para mentes criminosas quanto a certeza da impunidade. Nos últimos quatro anos, dezenas de operações contabilizaram centenas de capturas. Da multidão engaiolada, cinco ou seis continuam numa cela. Os outros voltaram às ruas para pecar sem sobressaltos. E em nenhum momento lhes faltou a mão solidária dos amigos influentes.

Assim tem sido nestes dias. Os criminosos amigos ainda se ajeitavam nos camburões e o prefeito Cesar Maia já reiterava a inabalável amizade que o liga aos comandantes das escolas de samba. Enquanto a polícia recolhia montanhas de dinheiro nos quartos, deputados e prefeitos se amontoavam na sala-de-estar do apartamento do amigo em apuros. Nos tribunais, declarações que traem a indulgência corporativista pavimentavam o caminho para a absolvição. O tumor cresceu demais. Se não for removido agora, a metástase virá.

Feliz com os resultados da operação, o presidente Lula cumprimentou o ministro Tarso Genro, que cumprimentou o delegado Paulo Lacerda, superintendente da Polícia Federal. A nação está ansiosa por cumprimentar juízes com suficiente altivez para remeter à cadeia a quadrilha inteira.

17 / 04 / 2007

Arquivo do blog