"O debate sobre o aborto é duplamente
positivo: porque é democrático e porque
é uma chance, ainda que remota, de
virar o jogo"
A sugestão do ministro da Saúde, José Temporão, de que o país faça um debate sobre a descriminalização do aborto, seguido de um plebiscito, já teve efeito esclarecedor: mostrou que quando um punhado de líderes religiosos se une a uns petistas desgarrados a coisa acaba num misto de autoritarismo e arrogância. Desde que o ministro disse em público o que todo mundo já sabia – que o aborto é uma delicada questão de saúde pública –, alguns líderes religiosos, aliados a meia dúzia de petistas, ficaram ouriçados e começaram a tentar interditar o debate, censurar opiniões, impedir a palavra. Não querem discussão, plebiscito, nada. O recado que nos mandam é: calem-se, todos.
Na semana passada, sob o comando do deputado Luiz Bassuma, petista da Bahia, líderes católicos, evangélicos e espíritas saudaram a chegada do ministro a Fortaleza com faixas, cartazes e vaias. Têm o direito de se manifestar e defender a posição que bem entenderem. Só que não estavam ali para marcar posição contra o aborto. Mas contra o debate. Dizem que são defensores do direito à vida, mas não respeitam nem o direito à palavra. Querem apenas calar a todos. O arcebispo de São Paulo, dom Odilo Scherer, disse que a convocação de um plebiscito sobre o assunto é "um absurdo". De novo, a idéia é que ninguém se aprofunde ou se esclareça sobre o tema. O recado é o mesmo: calem-se, todos.
A sugestão de um plebiscito é polêmica. Tem gente contra, tem gente a favor. Tem país que mudou sua legislação sobre o aborto por meio de plebiscito, como o caso mais recente de Portugal. Tem país que mudou na Justiça, como os Estados Unidos, onde o direito ao aborto é garantido por decisão da Suprema Corte desde 1973. Pode-se, portanto, ser contra ou a favor do plebiscito. Contra ou a favor do aborto. Mas interditar o debate é coisa de pequenos ditadores, que se julgam em posição de dizer ao país: calem-se, todos.
A histeria autoritária faz parte do truque. Se houver um debate amplo sobre o aborto, ninguém pode prever qual será a opinião majoritária dos brasileiros. Hoje, de acordo com a pesquisa mais recente do Datafolha, 65% querem que a lei continue como está, permitindo o aborto apenas nos casos de risco de morte para a mãe ou de gravidez decorrente de estupro. No plebiscito do desarmamento, as primeiras pesquisas mostravam que a maioria queria proibir as armas. O resultado final acabou sendo o inverso.
O debate é duplamente positivo: porque é democrático e porque é uma chance, ainda que remota, de virar o jogo. Seria ótimo se os brasileiros ampliassem o direito ao aborto. Ótimo para o Brasil e para as brasileiras, sobretudo para as mais pobres. Ninguém desconhece que, com dinheiro, se faz aborto em boas clínicas clandestinas no país. Sem dinheiro, é o caos. Por isso, 220.000 mulheres são atendidas por ano nos hospitais públicos em função de complicações decorrentes de abortos espontâneos ou voluntários. Por isso, é um assunto de saúde pública.
É difícil que haja plebiscito. Mais difícil ainda é que, em havendo, o aborto seja ampliado. Mas, no fim, teríamos ao menos o prazer de dizer: não, não nos calamos.