Entrevista:O Estado inteligente

sábado, setembro 02, 2006

veja Uma nova carta aos brasileiros

Cotejando-se o programa de governo feito pelo PT com os discursos de Lula, a conclusão é clara: o presidente é melhor que o partido


Otávio Cabral


Celso Junior/AE

Lula, ao fazer um de seus discursos recentes: clareza sobre o rumo da economia





Em seus discursos recentes, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva fez uma espécie de nova Carta aos Brasileiros, o documento com que, na campanha de 2002, se comprometeu diante da nação a manter a racionalidade econômica e a normalidade democrática. Com simplicidade, ele disse que é preciso reduzir a carga tributária, cortar os gastos públicos e manter uma rigorosa disciplina fiscal. No campo político, Lula foi cristalino quanto aos princípios que se propõe a sustentar. Eles vão dos menos factíveis, como dialogar com "todos os partidos", aos mais pétreos, como considerar "sagrado" seu compromisso "com a liberdade e a democracia". O dado surpreendente é que nada disso – a sensatez na economia, a maturidade na política – esteja contemplado no programa de governo que o PT fez para um eventual segundo mandato. Com 34 páginas e elaborado durante quatro meses, o programa é uma peça anódina, vaga e genérica, na qual não se elege um conjunto de prioridades, não se fixam compromissos claros nem se aponta um rumo minimamente nítido para o país. É uma peça tão aérea e tão imprecisa que fica devendo em clareza até mesmo às 88 páginas da proposta apresentada por Lula na campanha presidencial de 2002.

Com sua colagem de imprecisões, o programa defende o incentivo às pequenas empresas, mas não prevê redução da carga tributária, que vem a ser uma das principais razões da asfixia dos negócios. Diz que vai dar aumentos reais ao salário mínimo, mas não informa de onde virá o dinheiro. Promete "acentuar o crescimento de empregos formais", mas não solta nem mesmo uma dica de como pretende fazê-lo. Diz que a segurança pública será tema prioritário, mas não aponta uma única nova iniciativa na área. Além dessas imprecisões, há incongruências, como a de prometer preservar o equilíbrio macroeconômico e simultaneamente fazer silêncio sobre a necessidade de cortar gastos – medida que Lula defende abertamente em seus discursos. Com passagens assim, que fingem não existirem conflitos, fica claro que o programa foi elaborado com a intenção de não desagradar a ninguém. Tal comportamento fica ainda mais evidente no tratamento dado às reformas estruturais.

Em relação à reforma política, o texto atual traz algum detalhamento, defendendo o financiamento público das campanhas eleitorais, a fidelidade partidária e o voto proporcional em lista. Quanto às demais reformas, no entanto, não se compromete com nada. Em relação à reforma trabalhista, por exemplo, para não se indispor nem com empresários nem com sindicalistas, limita-se a dizer que o governo vai "encaminhar o debate". Sobre a reforma tributária, para não desagradar a governadores nem a prefeitos, que tendem a resistir a qualquer medida capaz de reduzir a arrecadação em seus estados e municípios, o documento diz apenas que, num segundo mandato, o governo vai continuar apostando em "programas seletivos de desoneração tributária". Trata-se de uma evidente subdeclaração num país em que a carga tributária ultrapassa 37% do PIB. Sobre a reforma da Previdência Social, um tema urgente mas impopular, o texto toma um caminho ainda pior: simplesmente silencia.

Um dos mentores do programa, que pede para não ser identificado, confessa que a imprecisão tem motivação eleitoral. "Se acenássemos com mudança nos benefícios previdenciários dos servidores ou dos aposentados, compraríamos brigas desnecessárias num momento em que só precisamos administrar a vitória", diz ele, que participou das reuniões de elaboração do programa e é interlocutor freqüente do presidente Lula. Numa passagem do programa, a intenção de agradar a todos para não complicar as chances de reeleição chega ao paroxismo. Diz o seguinte: é preciso a "elevação substancial dos investimentos, especialmente públicos e nacionais, bem como privados e estrangeiros". Ou seja: especialmente todos...

J. F. Diorio/AE


Marco Aurélio: deformando a opinião de Lula


Com seu tom macunaímico, o programa acaba por contrariar o que Lula tem dito em seus pronunciamentos mais recentes. VEJA comparou o atual programa com discursos que o presidente fez nas últimas duas semanas. Fica óbvio que Lula tem idéias mais claras e mais sensatas do que as expressas no programa elaborado pela cúpula do PT. Na solenidade em que o texto foi divulgado, Lula, em tom conciliatório, falou em "arrumar parceiros" na política, mas o próprio programa desanca a oposição, de um modo inamistoso que não abre espaço ao diálogo. Em outro discurso na semana passada, para a Associação Nacional de Jornais, Lula fez uma defesa da liberdade de expressão e de imprensa. "Sou comprometido com a liberdade em todas as suas dimensões essenciais. Com a liberdade de expressão, em seu sentido mais amplo, seu sentido cultural. E, em particular, com a liberdade de imprensa, essa ferramenta que ajudou a criar, manter e aperfeiçoar a democracia moderna em que vivemos." No mesmo dia, seu assessor internacional, Marco Aurélio Garcia, que coordenou a elaboração do programa de governo, disse que no Brasil existem "deformadores de opinião, e não formadores de opinião" e acusou setores da sociedade de "golpistas".

A dicotomia entre o que Lula diz e o que o PT escreve pode ser explicada pelo crescente distanciamento entre ambos. "Lula está cada vez mais independente do PT, sobretudo depois do escândalo do mensalão", diz o cientista político David Fleischer, da Universidade de Brasília (UnB). "Nesse ambiente, o PT até pode escrever numa proposta de programa o que realmente gostaria que fosse o segundo mandato, mas Lula faz e fará o que bem entende." Considerando-se o conteúdo do que Lula diz e do que o PT escreve, é um bom sinal que o presidente seja independente de seu partido. Com seus pronunciamentos, em que não acena para invenções populistas nem para aventuras políticas, Lula mostra que é melhor do que o PT – e, se for mesmo reeleito, conforme indicam as pesquisas eleitorais, é saudável que coloque em prática o que tem dito em seus discursos, e não o que o PT colocou no papel. O único ponto em que há uma perfeita convergência entre ambos – lamentavelmente – é na tentativa de minimizar responsabilidades individuais nos episódios de corrupção. O texto do programa, tal como Lula tem feito, ignora a existência dos escândalos. Chega a dizer, a certa altura, que o novo governo vai manter a "relação democrática com o Legislativo", quando o país inteiro sabe que a relação foi movida a dinheiro. Mas, se Lula se reeleger e rasgar o cartapácio petista, dando prioridade a suas próprias idéias, o país ganhará.

SOBRE A REDUÇÃO DE IMPOSTOS
EM DISCURSO NO CONSELHO DE DESENVOLVIMENTO, EM 24 DE AGOSTO
"Precisamos ter uma carga de impostos mais leve."


NO PROGRAMA DE GOVERNO
Não há nenhuma menção à reforma tributária para redução de impostos. A certa altura, diz apenas que o segundo governo deve "prosseguir em programas seletivos de desoneração tributária, buscando fortalecer a expansão do sistema produtivo".


COMENTÁRIO
O presidente está certo. É preciso reduzir a carga tributária, que já bateu o recorde histórico, passando de 37% do PIB, incluindo-se aí o peso dos impostos federais, estaduais e municipais. No programa de governo, a reforma tributária não é sequer mencionada, numa inexplicável omissão.


SOBRE O CORTE DE GASTOS
EM DISCURSO NO CONSELHO DE DESENVOLVIMENTO, EM 24 DE AGOSTO
"Precisamos trabalhar para melhorar a qualidade do nosso gasto, diminuindo as despesas de custeio para investir mais em infra-estrutura."


NO PROGRAMA DE GOVERNO

"O projeto real da oposição é o de voltar à era FHC: redução dos investimentos sociais, retomada das privatizações, retrocesso democrático e submissão no plano internacional. Os anunciados 'cortes do gasto público' visam, em verdade, a cortes nas políticas sociais."


COMENTÁRIO
Há um cabo-de-guerra entre o PT e a campanha de Lula quando o assunto é redução de gastos públicos e manutenção do superávit primário. Lula e ministros dizem claramente que haverá corte de gastos e que o superávit primário será mantido em 4,25% do PIB num eventual segundo mandato. O programa de governo, de novo, esquiva-se do tema.



SOBRE A OPOSIÇÃO
EM DISCURSO NO LANÇAMENTO DO PROGRAMA, EM 29 DE AGOSTO
"Ao ser eleito, teremos uma vida nova. Vamos ter novos deputados e vamos poder estabelecer nova relação. Vou construir essa relação pessoalmente com os partidos políticos. Pretendo conversar com todo mundo, com todos os partidos. Minha idéia é conversar com todos os partidos e dizer: 'Vamos pensar três quartos de tempo no Brasil e um quarto de tempo na disputa'."


NO PROGRAMA DE GOVERNO
"As eleições de 2006, mais do que quaisquer outras no passado, estarão marcadas por um enfrentamento político-ideológico que opõe um bloco social comprometido com profundas mudanças na sociedade brasileira àqueles que sempre utilizaram o poder do estado em benefício dos interesses de uma minoria."


COMENTÁRIO
A disposição do presidente Lula de conversar com "todos os partidos" é saudável e faz parte do regime democrático. O programa de governo mistura demagogia com ficção, ao criar antagonismos que não existem na prática – como a suposta existência de divisão de blocos e enfrentamento olítico-ideológico. Quando fala em trabalhar no assunto "pessoalmente", Lula deixa subentendido que o PT terá papel coadjuvante.


Silvia Izquierdo/AP

Alckmin, em evento de campanha: Lula acena com diálogo, mas o programa do PT desanca a oposição








SOBRE A DEMOCRACIA
EM DISCURSO AOS MEMBROS DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE JORNAIS, EM 29 DE AGOSTO
"O Brasil vive um período histórico de plena democracia. Nossas instituições estão fortalecidas e funcionam de forma independente. Longe vai o tempo em que as liberdades individuais eram cerceadas por um Estado autoritário, e tenho certeza de que a conquista da democracia é um dos motivos pelos quais nosso país, finalmente, está entrando nos trilhos de um desenvolvimento mais justo e sustentável."


NO PROGRAMA DE GOVERNO
Não há menção direta à defesa do regime democrático. Há passagens, no entanto, que sugerem a adoção da democracia direta "por meio de conselhos e comitês" populares.


COMENTÁRIO

O discurso de Lula é claro e correto na sua defesa das liberdades e do regime democrático. Seu programa, ao contrário, parece valorizar mais a democracia direta com as massas, desprezando as instituições – mas nem isso é dito claramente.


SOBRE A LIBERDADE DE IMPRENSA
EM DISCURSO AOS MEMBROS DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE JORNAIS, EM 29 DE AGOSTO
"Quero reafirmar a todos vocês que meu compromisso com a liberdade e com a democracia é sagrado. Sou comprometido com a liberdade em todas as suas dimensões essenciais. Com a liberdade de expressão, em seu sentido mais amplo, seu sentido cultural. E, em particular, com a liberdade de imprensa, essa ferramenta que ajudou a criar, manter e aperfeiçoar a democracia moderna em que vivemos."


NO PROGRAMA DE GOVERNO
Não há menção à liberdade de imprensa e, em vez disso, preconiza "construir um novo modelo institucional para as comunicações, com caráter democratizante", e promete "incentivar a criação de sistemas democráticos de comunicação, favorecendo a democratização da produção, da circulação e do acesso aos conteúdos pela população".


COMENTÁRIO
Lula, que chancelou a Declaração de Chapultepec, que lista os princípios básicos da liberdade de expressão e de imprensa, tem feito uma defesa clara e inequívoca desses princípios. No programa de governo, o texto é dúbio e parece fazer eco a documentos que já vieram a público nos quais o PT preconizava usar dinheiro público para financiar uma imprensa amiga.



AP










Oscar Arias, prêmio Nobel da Paz, assina a Declaração de Chapultepec: compromisso com a liberdade de imprensa

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